A ponta do meu polegar, perfurada para que uma pequena amostra de sangue pudesse ser utilizada no teste rápido, ainda ardia enquanto fechava minhas mãos em punhos. Talvez aquela fosse uma tentativa falha de tentar fazer com que os últimos minutos da minha vida parecessem reais, e, infelizmente, eles eram.
A sala de espera do posto de saúde da região central da cidade continuava movimentada, mas o ruído, provocado por aqueles que aguardavam que um médico os chamassem, soava distante se comparado aos meus pensamentos atônitos.
Com meus documentos e o papel que carregava minha sorologia em mãos, marquei uma consulta com a infectologista, como a psicóloga havia me orientado que fizesse. Assim, poderia dar início ao tratamento e tirar as possíveis dúvidas que tivesse.
Eu agradeci a recepcionista, que deve ter lido o medo através das minhas expressões, sorrindo de forma amigável e me desejando boa sorte.
Sem conseguir acessar os pontos do meu cérebro que me levavam a pensar com clareza, deixei que meu corpo se movesse para o ponto de ônibus mais próximo, ansioso para chegar no apartamento que dividia a pouco tempo com a minha melhor amiga.
Agradeci mentalmente pelo veículo não ter demorado tanto e não ser horário de pico, descarregando-me em um dos assentos vagos e buscando pelo meu celular. Eu sabia que estava me torturando lendo repetidas vezes o e-mail anônimo que me aconselhava a buscar um centro médico para realizar o teste para HIV. Eu nem precisei pensar muito, tendo apenas o total de um parceiro durante aqueles dezoito anos, eu sabia que meu ex namorado era o remetente daquela mensagem.
Eu não o odiava, muito menos pensava em uma maneira de como me vingar, mas não pude deixar de desejá-lo ao meu lado, imaginando como seria se pudéssemos passar por aquele momento juntos.
Havíamos terminado há algumas semanas, mas eu ainda me pegava pensando nele de madrugada. Entretanto, naquele momento, tudo o que eu mais queria era esquecer o que vivemos e o que estou sendo obrigado a viver agora.
Quando o ônibus parou no meu ponto, deixei o veículo e segui a pé as duas quadras que me levavam ao pequeno prédio em que morava. Sem porteiro e elevador, fiz a trajetória das escadas em silêncio, sem nem ao menos ensaiar como chegaria em casa.
— Nico, ainda tem bolo de cacau pra você! — Ana Carolina gritou da cozinha ao me escutar trancar a porta.
Éramos amigos desde que a garota tinha catorze anos e eu quinze. Após assumir minha bissexualidade para meus pais, que reagiram de forma positiva, fui encaminhado para fazer parte de um grupo LGBTQ+, pois acreditavam que pudesse ser benéfico para mim. E, eu percebi que foi, quando, logo na minha primeira reunião, Ana me acolheu em um abraço reconfortante, me deixando por dentro de como tudo funcionava.
Vendo a garota de pele morena e cabelo castanho escuro, com fios que desciam lisos de sua raiz e se transformavam em ondulações desiguais e bagunçadas, sempre com um largo sorriso estampado em sua boca carnuda, liderando as reuniões, era difícil acreditar que ela vivia o preconceito dentro de sua própria casa, sendo reprovada por sua família por ser lésbica.
Estudávamos em colégio diferentes, mas nossas saídas, que aconteciam depois das reuniões semanais do grupo, eram obrigatórias. Não demorou muito para que ela se tornasse minha melhor amiga, anos depois, deixando nossos familiares em nossa cidade natal e nos mudando para a cidade praiana que sempre fora nosso sonho.
— Nicolas, o que aconteceu? — ela perguntou ao entrar na sala, me encontrando inerte no único sofá que tínhamos.
Assim que a primeira lágrima caiu, fui amparado pelos braços da garota, que os fechou em torno do meu corpo fragilizado, fazendo com que fosse possível sentir o cheiro agradável do cacau que havia caído em sua regata surrada.
— Eu sou soropositivo. — deixei que as palavras saíssem, colocando aquele peso para fora pela primeira vez. — Eu tenho HIV.
Ela sussurrou que tudo ficaria bem, enquanto seus dedos largos percorriam meu cabelo escuro, preto como meus olhos, que se encontravam vermelhos pelo choro.
Não sei dizer ao certo por quanto tempo ficamos naquela posição, mas, o contato calmo que estávamos tendo, me tranquilizou. Eu ainda precisava de um tempo para digerir os últimos acontecimentos e agradeci por minha melhor amiga ter respeitado meu espaço.
— Por que não toma um banho e depois vem comer meu bolo? — ela sugeriu, olhando em meus olhos e esboçando um sorriso calmo.
Eu me forcei a sorrir de volta, assentindo com a cabeça e seguindo em direção ao meu quarto, que ainda estava bagunçado pela mudança recente. Deixei meu celular e minha carteira sobre a escrivaninha, seguindo em direção ao banheiro.
Senti o piso gelado assim que tirei meus tênis e meias, prosseguindo para o restante das peças de roupa. Após retirar minha camiseta branca, analisei meu corpo magro, em que alguns músculos se sobressaiam, minha pele levemente bronzeada pelos dias consecutivos na praia, e os cachos negros que envolviam meu rosto quadrado. Observando a imagem que o espelho me dava, eu continuava o mesmo, mas era como se, tudo que eu conseguisse ver, fosse o vírus.
Direcionei-me até o box, ligando o chuveiro e deixando que a água gelada caísse sobre meu corpo exausto, na esperança de que ela levasse toda a confusão embora.
Foi um banho rápido, logo eu estava de volta a sala, vestindo um shorts largo de tecido fresco e uma camiseta velha.
Ana sorriu ao me ver, sentada na mesa de quatro lugares que ocupava, temporariamente, o canto da cozinha. Quando me sentei ao seu lado oposto, recebi um pedaço de bolo no prato que sempre nos gerava brigas, o único pintado a mão que ainda não havíamos quebrado.
Eu sabia que aquele simples gesto era uma forma de demonstrar seu amor e carinho, e, estando ao meu lado durante os últimos três anos, ela lutaria mais uma batalha comigo.
— No que está pensando? — Ana perguntou, me tirando das minhas lembranças de dois anos atrás.
A garota estava com o notebook no colo, provavelmente caçando algum vídeo no Youtube. Ela tinha um coque desajeitado preso no topo de sua cabeça e reclamava constantemente do calor.
Eu não queria falar sobre o que estava relembrando, porque sabia que a deixaria preocupada. Eu já havia me tornado indetectável graças a medicação e minha saúde física era impecável, segundo a minha médica, mas Ana se preocupava com o meu emocional.
Era fato que eu havia mudado muito depois do diagnóstico, mas me sentia protegido com a vida que levava. Era mais fácil me envolver superficialmente com outras pessoas.
— Acho que deveríamos dar uma festa. — respondi, me levantando da posição confortável em que havia me aconchegado no sofá.
— Um dia antes das aulas começarem? — ela pareceu não aprovar a ideia.
Eu ia para meu segundo ano de cinema e Ana começaria a faculdade de artes visuais. Ela estava tão ansiosa que eu não sabia mais o que fazer para tentar acalmá-la.
— Não é como se você fosse dormir essa noite, né?
— Ok, mas você compra a bebida. — ela disse, se levantando e deixando a sala, minutos depois retornando com sua toalha no ombro direito. — E, se alguém der pt, você limpa.
Ok, eu mataria quem ousasse vomitar naquela noite.
Ana foi para o banho e eu me encarreguei de mandar uma mensagem para um dos grupos da faculdade e alguns outros amigos próximos. Pedi que trouxessem bebidas, já que eu não gastaria todo o meu dinheiro sozinho, e comida, me preparando psicologicamente para encarar o sol quente lá fora.
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A porta que construí para te deixar entrar
RomanceO único sentimento mais forte que o amor, é o medo. Nicolas e Ícaro terão que descobrir se valerá a pena deixar que suas barreiras caiam para ter um na vida do outro.