Havia o escuro, apenas o escuro. O ar estava úmido e abafado fazendo com que Nate se sentisse suado e pegajoso. Havia uma batida também, uma batida infernal. Mal os olhos dele se abriram, ele sentiu uma pontada forte na nuca e, subitamente, se lembrou do encontro nada agradável com os dois estranhos. Tentou se levantar mas a dor o deixou tonto e este caiu novamente na cama. Cama? Sim, cama! Estava em casa, afinal, mas o que era aquela maldita batida insistente? Percebeu, então, que era sua mãe tentando acordá-lo. Abriu a porta para ela, a porta nunca ficava trancada mas os pais se recusavam a tentar abrí-la, sempre batiam e batiam até que Nate se cansasse e levantasse para atendê-los.
- Ah! Finalmente você decidiu abrir. - essa era a forma dela de dar bom dia.
- A porta está sempre aberta, mãe. - Nate abriu um sorriso para ela e viu seu rosto se contorcer em sinal de desgosto. Isso doía, o asco que os pais sentiam por ele o machucava mais que qualquer coisa.
- Como se eu fosse entrar nesse... - ela fez uma longa pausa olhando para trás de Nate - nesse quarto. - a palavra quarto saiu carregada de nojo. - Seu café está na mesa, você pretende sair da cama hoje ou é mais um daqueles dias em que o mundo é seu inimigo?
Nate passava tempo demais no quarto, ele concordava com isso, mas não era necessário jogar esse fato na cara dele. Além do mais, café? A mãe não preparava seu café há anos, nem se importava mais se ele se alimentava ou se fazia jejum por uma semana. Mas ela se deu ao trabalho de preparar alguma comida pra ele, isso era uma novidade maravilhosa, sendo assim, o mínimo que ele poderia fazer era ir até a cozinha para comer. Fechou a porta do quarto e disse à mãe que iria em breve, chegando à mesa a pontada de de felicidade que o havia cutucado minutos antes, murchou e morreu. Em cima da mesa pequena que ficava entre a sala e a cozinha estavam seus remédios, todos os oito, e um copo d'água. Era isso que ela queria dizer com café da manhã? Nate se sentia decepcionado contudo não era surpresa, mais um dia normal.
Engoliu as pílulas com um só gole, não era difícil, fazia isso desde os seis ou sete anos. Claro que, naquela idade, eram só três remédios mas foram aumentando com o tempo, como que acompanhando seu crescimento. Até aquele momento, Nate não tinha parado para pensar no sonho que tivera, pois era só isso que poderia ser: um sonho. A dor intensa na nuca havia sumido e as lembranças começavam a ficar borradas. Ele poderia jurar que foi real, o vento, as folhas, o sol, o tigre imenso, a garota bonita que não dormia, o rapaz que a seguia. Nate sorriu ao pensar nos dois desconhecidos, apesar de um deles ter acertado com força sua cabeça para fazê-lo desmaiar, havia algo neles que lhe era familiar.
Mais um dia, mais uma luta. Deixando de lado o sonho estranho, Nate se arrumou para o trabalho e foi caminhando até lá. Ele trabalhava em uma lanchonete de universidade, o salário não era dos melhores mas o horário era bem flexível e ele podia flertar com alguns universitários atraentes, não que ele flertasse realmente, no máximo uma troca de olhares com alguns poucos homens e mulheres que se davam ao trabalho de olhar mais de uma vez para o atendente da lanchonete. O emprego em si não era ruim e, Andreia, a dona sempre se esforçava em perdoar os incontáveis atrasos e faltas de Nate. Ela ameaçava demití-lo mas parecia se importar com ele o suficiente para não fazê-lo. Entretanto, neste dia, ele havia chegado pontualmente às oito horas, só uma hora de atraso dessa vez, era um começo.
O dia no trabalho passou lentamente, como um dia qualquer. Nate fez seu intervalo, voltou para a lanchonete, fez mais um intervalo, voltou e uma hora antes do fim do expediente fez mais um intervalo, ele fazia muitos intervalos mas não tinha problema já que o outro garoto que trabalhava com ele não parecia se importar. Terminado o dia de serviço ele se pegou parado na calçada, sem saber para onde ir nem o que fazer. Ir para casa? Olhou seu relógio, sete da noite, ambos os pais estariam em casa. O pai provavelmente estaria no quarto do casal assistindo a algum jornal sensacionalista e a mãe deitada ao seu lado lendo notícias de algum site ainda mais sensacionalista. Definitivamente esse não era o fim de noite que Nate desejava para si, pensou em ir ao shopping e ver algum filme. Pesquisou rapidamente na internet os filmes que estavam em cartaz: nada que valesse a pena. Ficou ainda alguns minutos parado e, finalmente, escolheu descer algumas esquinas e passar em uma sorveteria próxima.
Era uma boa sorveteria, com muita variedade. Ele costumava ficar lá com os amigos na época que estudavam juntos, contavam moedas para pagarem os sorvetes por quilo com bastante calda quente. Nate sentiu uma pontada de tristeza, seus amigos estavam cada um em seu canto, vivendo sua vida, alguns eram pais, outros viajavam para fora do país. O que ele fazia? Estava se afundando em seus pensamentos quando viu um casal entrando na sorveteria e quase se engasgou ao olhar para eles. Os desconhecidos do seu sonho, eram eles, tinham que ser. Nate lera uma vez que o cérebro não cria rostos, apenas reproduz em seus sonhos rostos que você já viu antes, mesmo que por um minuto. Mas aqueles dois, ele tinha certeza que nunca os vira antes, no entanto lá estavam eles. Nate devia ter ficado encarando-os por muito tempo porque a garota o olhava desconcertada, ele parou de olhá-los e saiu disparado. Se eles fossem como havia sonhado, esse encontro terminaria com uma pancada na cabeça.
Nate estava consternado, decidiu ir para casa o mais rápido possível e, no caminho, pensava sobre o casal que vira no sonho e o que vira na sorveteria. Seriam eles assim tão parecidos? Talvez ele tivesse se enganado, deveria ter tirado uma foto sem que percebessem, devia ter olhado por mais tempo para ter certeza. Não conseguia parar de pensar naquelas pessoas, fazia tudo mecanicamente, nem se lembrava de ter comido ou tomado banho mas lá estava ele, deitado em sua cama, pronto para dormir. Conferiu seu relógio, nove horas, cedo demais para pegar no sono, pegou seu caderno embaixo do travesseiro e começou a desenhar as pessoas que vira mais cedo da melhor forma que conseguia. Desenhou o rapaz primeiro, ele era bonito e forte, com cabelos dourados e olhos igualmente dourados, até sua pele bronzeada tinha um tom dourado...ou estaria ele imaginando coisas? Olhou novamente para o relógio, dez e meia. Aí está um bom horário para dormir. Fechou o caderno, apagou a luz e acomodou-se. Tentava não pensar em mais nada para não ter mais sonhos confusos e, antes que percebesse, dormiu.
Nate sentia um balançar incômodo, como se ele fosse um saco de farinha sendo carregado no lombo de uma mula. Abriu os olhos e estava de fato sendo transportado por uma mula. O que diabos estava acontecendo? Estavam entrando em uma vila, crianças corriam de um lado para outro, padeiros e peixeiros vendiam seus produtos nas ruas, todos com roupas estranhas para ele. Olhou para quem puxava as rédeas da mula e viu novamente a garota pálida de cabelos escuros que sabia tanto sobre sua vida.
- Ei! Onde está me levando? - Nate sentia-se enjoado e precisava, desesperadamente, descer do animal.
- Olá! Você demorou para acordar, temia que Darwin tivesse aplicado força demais. - nessa hora a mula zurrou e a garota acariciou o topo de sua cabeça, Nate percebeu que Darwin era a mula. - Quer caminhar por si só?
- Sim, por favor. - eles pararam e Nate escorregou do lombo do bicho para o chão, sentia-se tonto e confuso - onde estamos?
- Em uma vila. - ela sorria para ele.
- Você tem um sério problema com respostas óbvias, qual o nome deste lugar?
- Se eu te dissesse o nome, você o reconheceria? - era um bom argumento.
- Acredito que não.
- Exato. - ela recomeçou a caminhada puxando sua mula/Darwin - agora vamos, temos que comprar comida e água, nossa jornada será longa.
Ela foi andando sem olhar para trás para ver se ele a seguiria e, como não via opções extras, ele a seguiu.
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Seis clãs Sete reinos
FantasyO jovem Nathanael não sabe o que pensar quando acorda em um mundo completamente diferente do seu. Parecendo ter entrado diretamente em um conto de fadas, Nate encontra seres místicos, obtém poderes com os quais jamais sonhara e precisa ainda salvar...