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ENCONTREI a garota-buquê. Uma moça na qual conheci apenas por palavras.
Conheci e não a conheci.
Conheci o profundo abstrato daquela cuja assemelhava-se brevemente com as variadas flores das quais já cultivei. No entanto, não a conheci tão explícita e pessoalmente quanto o contato que tive com os girassóis, calorosos e alegres como a expressividade da menina — meus diários raios de Sol. Não, ela escondia suas aparências e expunha seu interior como miosótis; pequenas, caladas. Apenas vê quem consegue sentí-la.
Efêmeros e graciosos foram os poucos dias em que tornei a vê-la, frequentemente; admirava-a sempre no mesmo lugar, observava-a sempre nos mesmos horários. Aquele finito tempo tornou-se um vício como o chá de camomila e o café amargo que servia a cafeteria do Jardim América. Tão passageiro como as flores de cerejeira que caem esporadicamente nas calçadas do Japão, erradicando o cinza pálido pelo singelo cor-de-rosa que pintam-lhe as pétalas na primavera.
Não precisava sequer sair porta afora de minha casa para vê-la; tão serena e solitária como uma singular tulipa arroxeada. Bastava a mim contemplar, através das telas e janelas, as nuances e a pluralidade de sentimentos que ela em mim causava. Uma relva fresca umedecia suas frases, acalentava seus anseios expressos em suas orações e proporcionava-me uma proximidade com o belo par de cravos em suas íris — mesmo que tudo apenas se limitasse a uma mera ilusão minha.
E eu permanecia entorpecida, como se raízes se firmassem em minhas entranhas a partir dos desejos de conhecê-la mais afundo, aquecendo meu próprio peito de ansiedade.
Os olhos perdiam-se dentre as linhas e parágrafos da menina — os quais acompanhavam a sonoridade de seu nome oculto —, atentando-se a cada detalhe das estruturas que produziam uma musicalidade impecável. Cultivei, em uma manhã, camélias brancas em prol daquele sentimento peculiar. A admiração tornava tudo tão intenso que a própria emaranhava-se em minha torpe consciência e alterava a capacidade de me tornar crítica — algo que sempre fui —, dando lugar a expectativa de encontrá-la novamente no dia seguinte.
E em outra noite, que não me lembro em qual delas, senti-me orquídeas. Algo vasto e desconhecido se apossou de meu corpo de maneira tão irredutível, que quis oferecer-lhe as flores que combinariam perfeitamente com o meu desejo e sua feminilidade, emanando da essência que acompanhava as pétalas alvas. Este algo semelhante às flores de hibisco desabrochava em meu peito e, por tal possessão, sentia-me aflita.
Aflita pois aquilo nunca fora programado para aflorar, nunca havia sido uma flor regada em época errada. Nunca no verão.
Descobri, desde aquele momento, um sentimento novo; assustava-me e infectava meu jardim de emoções. Ervas daninhas cresciam e enraizavam meu coração como as pragas que costumava arrancar em meu canteiro.
Os seres humanos fizeram-se autores de tantos conceitos e tantos sentimentos distintos... No entanto abominam as próprias particularidades. E onde aquele ardor recluso em meu peito era condenável, escondi-o nos hábitos de sentí-la e não tocá-la. Percebi, com o tempo, então, que não eram realmente ervas, e sim pequenos botões de margaridas. Algo singelo e belo aos olhos de quem, verdadeiramente, pode apreciá-lo.
Através da tela do celular, através das palavras que formavam uma narração cativante, ela residia ali. Em cada página, em cada enredo, em cada cena. Por trás de um nome oculto — um pseudônimo — ela desabrochava como as damas da noite se abrem ao pôr-do-Sol, diariamente, como eu a contemplava.
Tomei-me um pouco da coragem que me restava e troquei palavras com a garota. Ela era pontual. Gostava dos clássicos de literatura brasileira. Recitava para mim autores das mais variadas épocas; sobretudo, sua preferida, Clarice Lispector. Não pude conter minha euforia ao conhecê-la tão intimamente que, em um instante de minha inconsciência — insanidade, talvez —, pedi que nos encontrássemos uma única vez. Apenas uma unica vez. E não pelas redes ou quaisquer meios de comunicação, tamanha era minha ousadia naquele momento. Ela havia aceitado.
E então eu a vi pela primeira vez. Era mais linda que a mais diversificada das floriculturas. Quando tive que deixa-la ir, senti-me como se os espinhos das suas rosas vermelhas espetassem meus dedos — os quais a toquei. Mas tive que deixá-la ir, como o pólen que viaja milhas para florescer em outros jardins. Assim como ela agraciou o meu canteiro, outros também foram com a presença dela.
Lembrei-me, num estalo, de uma das diversas citações de sua autora predileta. Até em meus momentos débeis e enfermos sem sua presença, ela havia me ajudado a superar a dor amarga difícil de adoçar.
"E assim como a primavera, deixei-me cortar para vir mais forte". Foi o que eu havia feito. Deixei-a livre da prisão que meu próprio coração a oferecia. Ainda mantenho contato, mas nunca serão o mesmo desde que encontrei-a e tive a grandiosa sorte de tocá-la e sentir sua pele sobre meus dedos — tão aveludada quanto rosas brancas.
Assim como a primeira — esta garota-buquê, que representava um arranjo único de flores — , vieram outras. O ciclo se formou até que eu completasse todo o meu jardim de camélias enquanto apreciava o sabor amargo e nostálgico de café durante a minha viagem em cada uma delas. Mas nunca esqueci daquela garota. Foi a minha primeira e inocente begônia. O meu primeiro amor platônico.
E onde plantei as camélias brancas, colhi camélias rosas. As camélias de saudade.
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KŌHĪ TO TSUBAKI 🌿
Chick-Lit"E assim como a primavera, deixei-me cortar para vir mais forte" - Clarice Lispector. [crônica | original ]