Capítulo 2

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Como aquele era o começo das férias do trabalho, se permitiu dormir até um pouco mais tarde. Na verdade nem lembrava que horas havia dormido no dia anterior, porque o cansaço físico e mental haviam levado a melhor. Ela gostava de dormir tarde, porque sabia que de madrugada conseguia um pouco de silêncio para sua mente preencher. Descendo as escadas do quarto até a sala, encontrou seu pai sentado à mesa, lendo seu jornal e ignorando o pedaço de bolo na sua frente.

- As pessoas hoje em dia assistem TV, sabia? - Perguntou Mariana.
- Pena que na TV não passa meu caça-palavras favorito. Só passa TV Globinho. - Retrucou.
- É, isso foi embora alguns anos atrás. Bom diiia.
- Isso explica os níveis de criminalidade dos últimos anos... Boa tarde amendoim!
- Quem dera fosse de tarde, eu poderia tirar uma soneca - Ela falou, secretamente.
- Lembra de que dia é hoje?
- Claro. - Pressionou um lábio contra o outro. Ela fazia isso quando queria demonstrar emoções. Depois de uns segundos, ele disse:

- Quer ir 16:00? Evitamos de chegar de noite.
- Vou estar aqui, pai. Prometo. Eu só preciso ir no trabalho assinar uns papéis e garantir meu salário nas férias, burocracia. Não deve demorar, sério. Melhor ainda, pode ir direto, eu te encontro lá.
- Ok. Senta, deixa que eu cozinho alguma coisa pra você, sabe, como retribuição. - Ele disse, levantando e indo em direção ao fogão.

Ela então se pôs de lado na cadeira, com o rosto virado para seu pai. O sol batia em seus cabelos revelando um castanho escuro e levemente ondulado. Mariana não era nenhuma modelo, e seu jeito diferente puxava muitas pessoas para longe, mas ela gostava de si mesma. A perfeita imperfeição é quando você aceita que não é perfeito.

- Retribuir todos os anos que eu faço o café da manhã? - Perguntou.
- Você já provou do meu suco de goiaba? Vai ficar me devendo depois.
- Devendo açúcar. - Sussurou.
Simon fingiu que não ouviu. Bateu o suco, pegou o açucareiro e colocou quatro colheres em um único copo discretamente. Entregou junto com o bolo e espiou no canto da sala.
Mariana pegou o prato e o suco, sentiu o cheiro por suspeitar de alguma coisa, e então deu um gole no suco, esperando um amargo. Disfarçou:

- Uau, muito bom pai!
- Espero que termine tudo amendoim, é a refeição mais importante do dia, não é? A gente aprende muito no café da manhã, não é amendoim?

Colocou o copo na mesa, deu uma olhada e disse:

- Vai ter volta!
- Estou esperando! - Desafiou.

Assim que terminou de comer o bolo e escovar os dentes, começou a preparar o almoço. Um simples, por ter pressa.
Depois do almoço, ela pegou o carro e saiu em direção ao trabalho. Costumava pegar um caminho longe de centro da cidade, mais longe, porém mais calmo. Passava pela Terceira Ponte, onde a água lá embaixo cintilava um tom azul e branco brilhante que refletia até em cima e se misturava com a vista das montanhas ao redor. Isso só a fazia pensar em como nós escolhemos os melhores lugares, os mais bonitos, para transformar em um ambiente em que o esforço físico seja mínimo para conseguir o que precisamos. Está em todos nós o desejo de apreciar o bonito, e então dominá-lo para chamar de si.
Não existe algo mais bonito do que um lugar natural. Isso porque não é uma beleza puramente visível, mas também histórica. Decidimos olhar o visível, e não ver o que não se vê.

Chegou ao seu destino após cerca de uma hora de viagem. Estacionou o carro e entrou no grande edifício que pertencia à corporação da qual fazia parte. Olhou no relógio, 2:20. Esperou os papéis. Um pouco mais. Reclamou um pouco da demora. Recebeu os papéis, assinou.

Saiu então andando rapidamente em direção ao carro, cruzando aquele estacionamento no menor tempo possível. Entrou no carro e olhou o relógio, que registrava agora 14:50. Teoricamente, era tempo suficiente para ir direto, pois o combinado era de estar lá no local 16:30, pensou. Girou a chave, e saiu. Ligou o rádio para passar o tempo, mas desligou alguns minutos depois. Colocou então no pendrive com suas músicas selecionadas, e deixou tocando Words, de Passenger. E continuou dirigindo por aquelas ruas, levada pelo vento e pela melodia. Gostava especialmente da flauta na música; inspirava a melhor sensação de calmaria, que é duplicada pela letra poética. A música é sobre um amor de um dia, que não pode ser concretizado. Ela nunca teve isso, apenas desapontamentos e corações partidos, o que fazia dela ressentida com a ideia do amor existir. É por isso que existem as músicas, para nos fazer acreditar novamente, porque quando ela ouviu "Mas nós apenas sorrimos porque as vezes palavras não são as palavras certas a si dizer", ela acreditou. E quando ouviu "Nunca soube que era possível ter meu coração partido de diversas formas", ele sentiu.

Entrou em uma rua e se espantou pela quantidade de carros parados no trânsito em direção reta, e não havia mais volta. Na rua em que estava se dirigindo, havia uma blitz policial. Ela sabia que não podia perder o compromisso, não importa por quais razões, mas tudo que ela podia fazer é esperar! Isso parece muito com a vida, todo dia esperamos que amanhã ou daqui uns anos tudo vai ficar melhor e vamos ser felizes, e isso é o que impede de sermos felizes hoje. A felicidade é construída no momento, não guardada para o futuro.
Quando finalmente saiu da blitz, olhou o relógio: 16:10. Correu o máximo possível, porque acreditava que o que iria fazer era importante.
Chegou, estacionou e entrou no cemitério, dentro do horário. Avistou seu pai e então foi em direção a ele, ao qual disse, em tom baixo:

- Tive medo de me atrasar. Teve uma blitz no caminho.
- Que bom que você veio, amendoim. - Respondeu.

Andaram um pouco mais a frente e sentaram no banco. Mariana olhou para a frente e percebeu que naquele dia o pôr do sol havia começado cedo, embora o dourado havia sido guardado para mais tarde. Os pássaros pairavam pelo céu azul, manchado pelo branco das nuvens e sendo derrotado pelo amarelo do sol. O vento batia trazendo consigo lembranças de todo ano estar alí, desde a morte de sua mãe, mas nunca sentia claramente essa dor; muito nova, mas nada de novas lembranças. Ela sentia falta de alguém, mas alguém que esteve por muito pouco tempo.

- Sua mãe, ela... costumava levar você a uma livraria não muito longe daqui. Você não vai lembrar disso, você devia ter uns 4 anos. Um dia, ela deixou você no chão por um segundo enquanto olhava um livro, e você tinha desaparecido. Ela foi de corredor em corredor perguntando, até que
-  Ela me encontrou com os livros de pintar. Eu tinha arrancado os lápis de junto do livro e começado a pintar todos os livros que eu achei! Você me disse, anos atrás - Riu.
-  É... Acho que estou ficando sem histórias novas né?
-  Eu duvido disso.
-  Por quê? - Simon perguntou.
-  Vinte e cinco anos de casado, isso não é pouca história. Além do mais, todo dia é uma oportunidade de fazer novas lembranças, mesmo sem ela.
-  Lembranças são como vinho, amendoim. Alguns são melhores depois de muitos anos. Se eu soubesse, eu teria aproveitado cada segundo que eu tive e... não sei... 
-  Você aproveitou, pai. E agora a melhor coisa que você tem é poder dizer que conheceu e viveu com ela por mais de duas décadas! Isso é algo que só você pode dizer, pai.
Depois de uns momentos de silêncio, Simon disse:
- Você me lembra sua mãe, sabia?
- É? Como?
- Esse desejo de querer mudar tudo. De pensar diferente. Você deveria escrever um livro.
- Eu tenho um caderno de poesia. Eu tento, mas não acho que eu seja muito boa com palavras.
- Sua mãe era. Ela me disse uma vez que a coisa mais importante é sentir algo enquanto escreve. As palavras vão vir a você, Mariana.

Levantou do banco e disse a ela:

- Eu vou vê-la agora. Quer vir junto?
- Eu te acompanho, pode ser? Tenho uma coisa para fazer antes.
- Ok. Sabe onde me encontrar.

Alcançou a bolsa e puxou aquele caderninho de poesia, a caneta e o fone. Começou a escrever.

Longe DaquiOnde histórias criam vida. Descubra agora