Marthe veio correndo, após ouvir a violenta batida da porta.
- Ele saiu? - surpreendeu-se.
- Foi embora! - respondi.
- E o almoço?
- Não vai comer. Pior ainda, ninguém mais fará sequer uma refeição nesta casa, segundo determinou.
A criada juntou as mãos, assustada.
- Como assim?
- É muito simples. O tio Lidenbrock prometeu deixar todos nós em jejum até que ele consiga decifrar um velho quebra-cabeça, absolutamente impossível de ser decifrado!
- Vamos morre de fome! - gemeu ela.
Nem tentei dar mais explicações. O que esperar de um homem autoritário, senão uma atitude como essa? A velha empregada voltou alarmada para a cozinha.
Fiquei sozinho. Tinha vontade de ir contar tudo a Graüben. Mas não podia sair de casa. E se o professor voltasse? Se me chamasse novamente para ajudá-lo com o enigma? O mais prudente era aguardar. Tínhamos recebido uma coleção de pedras de silício que precisavam ser classificadas. Dediquei-me a essa ocupação. Separei, etiquetei, organizei todas as pedras. Mas não conseguia me concentrar. O pergaminho não me saía da cabeça. Meus miolos ferviam, sentia-me confuso e inquieto. Um pressentimento me dizia que uma catástrofe se aproximava.
Uma hora depois, as pedras já estavam em ordem. Sentei-me na grande poltrona de veludo, para descansar. "Onde estará meu tio?" - pensei. - "Voltará triunfante ou desencorajado? Vencerá o segredo ou será vencido por ele?".
Peguei a folha de papel onde estava inscrita a série de letras de significado incompreensível. Tentei agrupá-las de modo a formar palavras. Impossível. Tentei diversas variações: em duas, três, cinco ou seis. Não faziam o menor sentido. De fato, no meio da primeira linha, três letras formavam a palavra inglesa ice. Outras três, na terceira, formavam sir. Nas segunda e terceira linhas percebi ainda as palavras latinas rota, mutabile, ira, nec, atra.
"Essas últimas palavras podem dar razão ao meu tio em relação ao à língua em que o documento está escrito" - refleti. " Na quarta linha há também o termo luco, que em latim significa bosque sagrado. Mas na terceira linha a palavra tabiled pode ser hebraica, e na última, mer, arc e mère só podem ser francesas."
Era de enlouquecer! Quatro idiomas diferentes em uma única frase? Que relação poderia haver entre gelo, senhor, raiva, cruel, bosque sagrado, mutável, mãe, arco e mar? Só consegui relacionar o primeiro e o último vocábulo. Nada mais previsível que um documento escrito na Islândia falasse em um mar de gelo. Daí a compreender o significado total do criptograma era outra história.
Continuei a observar o papel. Meus olhos piscavam de cansaço. As cento e trinta e duas letras rodavam em minha cabeça! Senti uma espécie de alucinação e falta de ar. Instintivamente, abanei-me com a folha de papel. Enquanto ela se agitava, as letras se alternaram diversas vezes diante de mim. Sem pensar, batia os olhos na frente e no verso.
Para minha surpresa, numa dessas rápidas viradas, vislumbrei algumas palavras perfeitamente legíveis. Termos latinos como craterem, terrestre, entre outros.
Tive um clarão no meu cérebro. As pistas me conduziram à chave do enigma! Era possível ler o texto do pergaminho! Os engenhosos raciocínios do professor estavam corretos! Bastava entender a disposição das letras! Mais ainda: realmente estava escrito em latim!
Demorei algum tempo para me acalmar. Cheguei a dar duas voltas pelo escritório. Sentei-me novamente. Respirei profundamente e me preparei para ler. Inclinei-me sobre a mesa. Percorri com o dedo todas as letras, sem parar, sem vacilar um só instante. Pronunciei em voz alta a frase inteira.
Que susto! Fiquei em estado de choque. Como? O que eu acabara de ler realmente acontecera? Um homem tivera coragem de ir até o...
- Meu tio não pode saber disso! - exclamei. - Não desistirá enquanto não realizar a mesma viagem! Será impossível impedi-lo! E me levará com ele! Pior! Não voltaremos nunca mais!
Cada vez mais nervoso, eu não conseguia me conter. Tomei uma decisão.
- Vou destruir o pergaminho, para que ele nunca descubra a chave do enigma!
Peguei o manuscrito e a folha de papel com as letras que eu decifrara. Minhas mãos tremiam. Decidirá arremessar tudo dentro da lareira acesa.
Nesse instante, meu tio voltou.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Viagem ao Centro da Terra
Fiksi IlmiahUm pergaminho escrito a mão com letras rúnicas escorrega de um livro de setecentos anos. Traz a mensagem que motiva o professor Lidenbrock e seu sobrinho Axel a partirem de Hamburgo para a mais estranha e arriscada expedição científica do século XIX...