Melancolia Boêmia

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         Ao entardecer, vinha subindo o Morro da Babilônia, João de Oliveira, batendo os chinelos, suado, cansado e pensando em como havia chegado ao ponto de grande insatisfação em sua vida, como havia se perdido tanto de seus objetivos. Lembrou-se de sua família, do dia em que deixou a modesta casa de sapê, saiu a noitinha, escondido de seus pais, a vida não podia culpar-lhe por querer condições melhores, pensamento ingênuo de um pobre jovem que acreditou nas mentiras de que o esforço e sonho compensa.

         Chegou em casa, se é que um barracão sem número, deixado ao alheio pode ser chamado de casa. Deitou-se no colchãozinho ao canto, a única coisa que lhe restava era sentir o alívio de descansar os músculos de seu trabalho árduo, carregando o dia inteiro, de cima para baixo e de baixo para cima, os produtos da feira. Por uma hora descansou.

         E então começou a se preparar para o seu próximo trabalho, quem não consegue ganhar dinheiro de dia, tenta ganhar a noite. Tomou banho, se perfumou, vestiu um terno velho e desgastado, pego de seu pai. Era necessário passar  uma boa impressão aos seus clientes ricos e exibidos. Quando se olhava no espelho, vestido assim, bem arrumado, lembrava de tudo o que queria ser, de toda fantasia de sua vida , mas ali, sem nada, farto de tudo, só lhe restava seguir em frente, mesmo considerando que não havia sequer um caminho.

        Foi até o bar na esquina ' Vinte de Novembro' , seu ponto de encontro com seus consumidores. Um carro preto chegou, ele entrou, era hora da festa de mau-gosto começar, seus lindos olhos claros, pele cor de bronze e corpo atlético só serviram para lhe dar o apelido de João Gostoso e o fazer ser o mais cobiçado dos garotos de programas da rua.

        Melhor assim, sem nenhum contato com sua família, João nem sequer podia imaginar a tristeza de sua mãe e o desapontamento de seu pai ao imaginar senhoras beijando o filho e senhores o apalpando, gente importante mas que ninguém sabia na penumbra o que faziam. Talvez ele não quisessem mais voltar para casa um dia, já havia se sujado tanto que nem tinha coragem.

        Com o serviço terminado retornou ao bar, sentou-se no banquinho do balcão e bebeu, dançou com os outros homens e mulheres presentes enquanto cantavam as músicas, ele sabia que bebia só para aliviar a tristeza, fazia isso todas as noites, funcionava só até o amanhecer. Mesmo embriagado e  confuso tomou uma decisão objetiva: estava na hora de dar um basta naquilo tudo, nas bebedeiras, na promiscuidade, no incontentamento, naquela vida pagã. 

        Nas ruas,  na madrugada ele andava, foi até seu vizinho que lhe cobrava mensalmente uma espécie de aluguel para não contar a prefeitura a ocupação da construção pública e lhe jogou um pacote com a quantia equivalente, João não o julgava, pois eram tempos difíceis, cada um se virava como podia , e o preço era menor do que qualquer outro lugar que podia arranjar. Continuou sua caminhada cantando atrapalhado uma canção de Gonzaga até parar em frente a um abrigo infantil onde jogou bruscamente o envelope com o restante do dinheiro que havia recebido, provavelmente pela manhã as crianças o achariam.

       Decidido, animado e eufórico, assim a vida boêmia tem seus males, depois das três da manhã na noite enluarada, tropeçante com sua sanidade, vinha o homem.

      Chegou  a ponte Rodrigo de Freitas, e como as moedas atiradas por infames que matavam engasgados os peixes em troca da idiota ideia de desejos realizados, ele se atirou, pelo desejo de sessar a dor bucólica que o assombrava. Não tendo moedas, pagou com sua vida,  caindo rápido como um choque sagaz e como no início da percepção da realidade . A superfície o engoliu e ninguém viu, assim como ninguém via quando seu sorriso desvanecia e a lágrima do olho caia, como um corpo desabando da ponte. 

      Cansado de se afogar em garrafas, a água era eficaz, a bebida não. Ao primeiro gole desta o desejo, ao segundo a euforia e ao terceiro a trágica melancolia, enquanto aquela de gole em gole fazia descansar a alma, inconsciente agora, daquele miserável sonhador. Era mais um que se ia, mais um que ninguém sequer sabia.

Melancolia BoêmiaWhere stories live. Discover now