Conto de n° 1

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" Not even sometimes "

Imagine que você não possa gritar. Imagine que você se sente tão inócuo que seus pensamentos o sucumbem. Imagine que você pudesse mudar o seu passado. "Ah não" você pensou (eu sei que pensou). Obras de ficção que narram viagens temporais já estão tão saturadas que você não suporta mais os clichês de todos os livros, séries, jogos e contos, todos já se tornaram adeptos deste plot. Mas imagine que seu passado é composto de pequenas ligações, e essas ligações te levam até onde você está agora, lendo estas palavras e tendo uma crise existencial. A vida é apenas uma coleção de momentos, tatuagens em sua mente, histórias, então, deixe-me contar mais uma para você. Se não gostar é só sair por aquela porta que você já está encarando, permita que eu lhe fale sobre Alessandro.
Alessandro é um homem comum. Acorda todas as segundas-feiras frustrado pois teve de acordar cedo (e sempre se encontra atrasado) para pegar o ônibus das seis. Ele chega pela noite em seu apartamento no centro da cidade e olha para a tela de seu celular como qualquer outro cidadão, como você. Você é muito parecido com Alessandro, por exemplo. Você se arrepende de atos tão banais de seu passado que chega a ser patético, você agradece a eles pois moldaram quem você é hoje, e todos aqueles discursos que se vê se rolar o feed do Facebook por pelo menos 5 minutos. Mas será que é realmente assim que você se sente?
Como qualquer ser humano comum, Alessandro tem um hobbie, em seus raros momentos livres como um professor de ensino fundamental, Alessandro costuma fotografar coisas com sua velha câmera Nikon. Mas por que eu estaria contando a história de um homem tão comum como Alessandro para você? Poderia contar a história de Camila, por exemplo. Camila é uma adolescente que passa pela linha ferroviária todos os dias pela manhã no caminho até a escola, e adora ler quadrinhos da DC comics, Camila não gosta de espinafre, e detesta ter de lavar louça e adora ouvir músicas da Rita Lee em seu Walkman. Por que eu contaria a história de Camila para você também? Ela vive uma vida como a sua, por que seria especial?
Camila agora não era mais uma adolescente, camila não ouve mais Rita Lee em seu Walkman, (quem ainda utiliza Walkmans? Eles ainda existem?) Camila sempre se perguntou o porquê de não ter uma vida extraordinária, cresceu em uma Brasília qualquer, num país qualquer da América latina, era uma mulher qualquer. Nenhum de seus romances fracassados seriam um bom livro, ou nenhuma de suas viagens arrepiavam os pelos de quem ouvisse os relatos. Camila tem uma mania estranha de colecionar cactos, talvez porque fossem as plantas favoritas de sua falecida avó, seres humanos tem tais costumes peculiares, você também deve ter algum.
Camila ainda passa pela linha ferroviária todas as manhãs, nunca se mudou, apesar das lembranças de sua vovó ainda passearem pelo ar, isso é a única coisa que a permite continuar (talvez seus antidepressivos devessem receber o crédito, mas não vem ao caso)
Já deve ter enjoado da vida de Camila, que tal retornar para Alessandro?
Ser um professor de literatura nas escolas particulares de Brasília era cansativo, ainda não sabe se tem amor pela profissão, e tem de suportar aquela aluna alternativa do 9° ano vir trazer um discurso perguntando o porquê de não abordar Harry Potter em suas aulas ao invés de Machado de Assis. No fim do mês receberia um salário que sabia que não valia um quarto de seu esforço, mas o que faria? Nos domingos seus pais falariam que era tudo culpa de partido tal durante o almoço. Tudo bem, já entendi que você e o Alessandro são realmente parecidos, o que levaria você a ler um conto onde um personagem é tão parecido com você? Nem você mesmo sabe. Veio a estas páginas procurando a empolgação da jornada do herói. Mas por quê Alessandro não seria um herói? Desculpe, vamos voltar para Camila.
Camila escreve livros, já não tem esperanças de ser aceita por uma daquelas infelizes editoras, ganha a sua vida em trabalhar em uma biblioteca pública, se irrita pois todas as edições de A menina que roubava livros haviam sido roubadas, e constantemente as mesmas 3 meninas adolescentes levam os livros de John Green, o que ele faz de especial em seus romances além daquelas frases toscas que todos compartilhavam no Instagram? O que ele faz para que suas heroínas e heróis parecessem realmente heroínas e heróis? Ok, você também tem um sonho como Camila, mas já se perguntou o porquê de não conseguir fazer com que se realizem? Não me pergunte, também gostaria de ter uma resposta.
Alessandro também faz essa pergunta frequentemente para si mesmo em frente ao espelho, é um homem tremendamente ambicioso (sabia que aquilo seria sua ruína).
Alessandro se prepara para seguir sua jornada diária, Alessandro pega sua mochila e sai de casa com o popular medo de sofrer um assalto, uma chuva quebra suas expectativas de ter um dia razoável. Se não fosse o suficiente, esbarrou em um jovem e deixou cair a edição de "A Viuvinha" que estava trabalhando com a turma de 9° ano (A garota potterhead alternativa detestava aquele livro). Posso quebrar suas expectativas se estiver acreditando que Camila o encontrará em sua livraria e viverão feliz para sempre. Alessandro seguiu o seu dia e durante a aula teve de pedir emprestado o livro de um aluno que já havia finalizado a leitura.
Você está entediado agora, talvez vá gostar de conhecer a história Poliana. Poliana trabalha com telemarketing, largou a escola pra cuidar do Pedrinho, geralmente brinca com todos e diz que o pai do menino foi comprar cigarro e nunca mais voltou. Poliana gosta de ouvir músicas de Blues ou Jazz, como a que cantava para Pedrinho quando estava grávida, aquela que você com certeza conhece "you're just too good to be truth, can't take my eyes of you...". Poliana nunca mais foi vista desde que foi capturada pelos militares em 1980. 6 anos depois, Pedrinho já tinha 12, e do outro lado da capital de Brasília, nascia Camila Oliveira (provável que fosse de origem judia), não chegou a conhecer a mãe; Posteriormente teria de tomar antidepressivos pois adquiriu a tal depressão. Passou a vida inteira se culpando por sua morte.
Você não teve tempo de conhecer Poliana, mas acredito que sentiu empatia pelo jovem Pedrinho. Pedrinho agora não é mais Pedrinho, como toda criança que cresce, (e já teria quase seus 40 anos de idade) dispensa o uso de apelidos. Pedro Loures, Pedro Loures é diretor de uma escola, e não sei se você vai se interessar por sua vida, porque é extremamente miserável, neste exato momento lê algum documento que não gosta de ter que ler, e é interrompido por Luana, uma garota do nono ano, Luana diz ter sido enviada pelo professor Alessandro, e leitor, você deve estar com certeza acreditando que terá alguma coisa que tirará esta história da monotonia, neste exato momento, mas não passa de um fato, não se assuste, vamos continuar com Luana. Luana alega que não levou o livro, "A Viuvinha" (E Luana jurava para Deus que preferia Harry Potter) para aula, e foi enviada para sua sala por falta de material, e desafiou o professor ao dizer que ele também não trouxe. Agora está aqui, na frente de Pedro. Pedro assina sua caderneta e manda ela para volta da sala.
Leitor é agora. Agora que o sinal tocou, e o expediente de nosso atual herói, Pedro, irá ter um fim. Pedro sai das portas da escola e vira uma rua para a direita, estava confuso e não sabia para onde ir, como em uma narrativa de um verdadeiro herói, ele encontra a porta daquela biblioteca. E agora, você está se perguntando se aquela é a biblioteca que Camila trabalha, lhe afirmo pois poderá neste exato segundo imaginar a figura que idealizou de Camila sorrindo, porque algo a diz para sorrir. Pedro Loures em alguns anos se casará com Camila, e ela se tornará Camila Loures (leitor, não fale isto para eles, seria um choque). Se não tivesse um dia em sua idade de 37 anos pisado naquela livraria em busca de "A Viuvinha" um livro de José de Alencar, que Camila não suportava, jamais teria a encontrado naquele balcão, dando um sorriso, e se o professor Alessandro não tivesse levado a jovem alternativa Luana em advertência para a sala de Pedro, o amor dele e Camila jamais aconteceria.
Esta história é uma história comum. Sobre pessoas comuns. Você pode ser Pedro, você pode ser Camila, você pode ser Alessandro, ou até mesmo ser Poliana, mas saiba que você é um herói, apenas por viver a vida como ela é, apenas por ter uma história extraordinária, e eu tenho certeza que se analisar toda sua linha do tempo, leitor, você é um ótimo livro. Imagine que seu passado é composto de pequenas ligações, e estas ligações levam você até onde está agora, lendo estas palavras e tendo uma retrospectiva de tudo que veio antes até você ser você. E talvez aquele discurso de Facebook esteja certo, e aquelas frases clichês de John Green que você via por todo lugar em 2014 também estejam, ele tem razão, alguns infinitos são maiores que os outros, cabe a você e as suas escolhas. Talvez amanhã você entre em uma biblioteca e encontre uma pessoa, ou um livro. Adeus leitor, foi bom ter este tempo com você.

Sometimes - ContosOnde histórias criam vida. Descubra agora