Celso acordou animado. Era quinta-feira.
Toda quinta-feira ele acordava assim. Era como se os demais dias da semana fossem um simples pedágio que ele devia pagar para poder desfrutar das quintas. Recém-desperto, sentou-se na cama por uns instantes, e com olhos embaçados depois do sono calçou os chinelos. Foi até a porta de entrada e lá encontrou sobre o capacho o jornal do dia. Com setenta e dois anos era difícil se acostumar às novas tecnologias, por isso preferia o jornal em modelo tradicional. Um jornal feito de papel e tinta, sem curtidas e comentários de terceiros que ele nem conhecia, com letras e fotos que não mudavam de lugar, um jornal tradicional era sempre sua opção mais segura. Ele preferia tudo assim.
Seguindo o ritual de todo dia, voltou para a cozinha e preparou o café da manhã. Qualquer vida é sempre um conjunto de ações mais ou menos previsíveis e sequenciais. Ajustar o filtro de papel, colocar o pó, ferver a água, despejar a água sobre o pó, aquecer as xícaras. Para Celso a vida era sempre previsível. Ele não conseguiria viver uma vida de imprevistos, de improvisos. Preferia manter-se assim, na rotina do dia a dia onde se sentia seguro e confortável. Era o conforto que lhe trazia felicidade. Passadas as intemperanças da juventude, vivia desse modo já há 72 anos, e não via motivo para mudar.
Depois do café sentou-se à mesa na varanda envidraçada que mantinha as alterações do clima no lado de fora e folheou o jornal. Foi direto até a página da agenda do dia. Lá estava a chamada. O formato era diferente, mas em essência era quase a mesma de 50 anos atrás anunciando o show musical naquela noite. Desde que o Marquês do Pombal havia tornado o ensino da língua portuguesa obrigatório em 1759, muitas mudanças ocorreram na forma de escrever. Mudanças de qualquer tipo não eram o forte de Celso. Para sua tristeza, os últimos 50 anos haviam sido repletos de mudanças: ontem já não tinha h quando ele nasceu, e hoje não havia mais dois e em têm, super-homem conservara seu hífen, mas supermulher o perdera. Ele, o piloto, a moça e o governo perderam o circunflexo, e a linguiça perdeu a trema.
Sorriu internamente. Celso não era dado a sorrisos. Ele leu certa vez que sorrir era um erro do cérebro, e não havia qualquer teoria que explicasse aquela manifestação involuntária. Nunca mais riu. Preferia conter-se, a contenção trazia o padrão, e o padrão era seu mantra de vida. Mas aquele pequeno texto de quatro linhas em Times New Roman grafado no jornal o fazia sorrir por dentro. Era hoje, quinta-feira, mais uma delas, um dia abençoado, e se Celso acreditasse em alguma divindade (ele não podia acreditar porque divindades costumavam improvisar demais na elaboração dos resultados), certamente a quinta-feira seria seu dia santo.
Passou a manhã e a tarde envolvido em seus rituais. Foi ao barbeiro logo no início da manhã, não antes de tomar um banho de exatos oito minutos, tempo suficiente para lavar todas as partes de seu corpo numa dinâmica bem ordenada e estabelecida, uma espécie de balé russo de movimentos coordenados. E depois mais quatro minutos para secar-se. Sempre iniciando pela cabeça e descendo até os pés, pois obviamente a gravidade havia de auxiliá-lo fazendo a água escorrer também de cima para baixo.
Vestiu uma roupa sóbria como lhe parecia adequado para ir ao barbeiro. Presenciava muitos homens indo ao salão de bermudas ou chinelos, como se fazer a barba ou cortar o cabelo fosse o mesmo que tomar sol em Copacabana ou surfar no Arpoador. Achava aquilo um desrespeito ao profissional, por isso sempre se vestia com esmero para uma sessão de barba e bigode. Ao chegar ao salão ninguém estranhou. Em circunstâncias normais, qualquer barbeiro não entenderia porque aquele senhor de cabelos brancos meticulosamente cortados e penteados estaria ali. Mas era quinta, e seria estranho para o barbeiro que o atendia há 40 anos se Celso não aparecesse exatamente às nove horas e vinte minutos da quinta.
Ao sair parou na padaria e tomou um café expresso acompanhado por um pão de queijo. A padaria havia passado por diversas reformas, tinha novos balcões que chegaram com os novos donos há uns dez anos atrás, um novo letreiro de letras douradas, mas o que importava neste caso era o referencial geográfico, não os detalhes. Celso sentava na mesma mesa voltado para a avenida e nem sequer via os carros passarem, pois seu olhar buscava lembranças da juventude distante, e assim, puxando da memória se lembrava da primeira vez em que a vira.
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TODA QUINTA-FEIRA
Short StoryNeste rápido conto você vai conhecer Celso, um sujeito que detesta mudanças. Toda quinta-feira Celso cumpre um obsessivo ritual, tudo para ver a mesma mulher cantar... há cinquenta anos. Conheça aqui um pouco do meu trabalho e leia também A Menina...