Prólogo

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CREDITO NAS CAPAS:
1º capa: @imchibiedits no Twitter
2º capa: @by_lockscreen no Twitter
Ambas fazem um trabalho maravilhoso, ficaram ótimas, obrigada


A família de Harry será outra.

•Harry terá um olho azul e outro verde, por conta disso será desprezado pela família e outras pessoas.

•Louis é o melhor amigo de Harry

Harry, filho de Lohstrong, entrou na casa da família passando pela imponente porta da frente. No instante em que passou pela soleira, o cheiro do lugar invadiu seu nariz. Lustra-móveis de limão. Velas de cera de abelha. Flores frescas do jardim que os doggen colhiam diariamente. Perfume – da mãe. Colônia – do pai e do irmão. Chiclete de canela – da irmã.
Se a empresa Glade um dia produzisse um aromatizador como aquele, ele seria chamado de "Campina dos Abastados". Ou "Aurora de uma Conta Bancária Polpuda".
Ou, quem sabe, o mais popular "Somos Melhores do que Todos".
Vozes distantes vinham da sala de jantar, as vogais tão brilhantes quanto os diamantes lapidados, as consoantes arrastadas, suaves e longas como fitas de cetim.
  – Ah, Lillie, isso parece ótimo, obrigada – a mãe disse à criada. – Porém, é muito para mim. E não sirva tanto assim a Solange. Ela está engordando.
  Ah, sim, a dieta da mãe permanentemente imposta à geração seguinte: as fêmeas da glymera supostamente devem desaparecer de vista quando estão de perfil, cada osso da clavícula exposto, as faces encovadas e antebraços ossudos como uma espécie de distintivo de honra de merda.
Como se você se tornasse uma pessoa melhor por se parecer com um atiçador de lareira.
E como se a Virgem Escriba a protegesse caso a aparência de sua filha fosse saudável.
– Ah, sim, obrigado, Lilith – o pai agradeceu.
– Um pouco mais para mim, por favor.
  Harry fechou os olhos e tentou convencer o corpo a dar um passo à frente. Um após o outro. Não devia ser tão difícil assim.
Seu calçado Ed Hardys, novinho, levantou o dedo do meio para essa sugestão. Por outro lado, por tantos motivos, entrar naquela sala de jantar costumava ser bem desagradável.
Deixou cair a bolsa de lona no chão. Os dois dias passados na casa do seu melhor amigo, Louis, fizeram-lhe bem, como uma folga da completa falta de ar desta casa. Infelizmente, a dor do regresso era tão intensa que o custo-benefício de sair equilibrava a situação.
Ok, aquilo era ridículo. Não podia continuar ali parado como um objeto inanimado.
Caminhando para a parede lateral, recostou-se contra um antigo espelho de corpo inteiro colocado bem ao lado da porta. Tão atencioso. Tão adequado com as necessidades da aristocracia em parecer bem. Dessa forma, os visitantes poderiam ajeitar os cabelos e as roupas enquanto o mordomo recebia seus casacos e chapéus.
O rosto do jovem pré-trans que o fitava pelo espelho tinha feições equilibradas, um belo maxilar, uma boca que, ele tinha de admitir, parecia ser capaz de fazer belos estragos à pele nua quando ele amadurecesse. Ou talvez isso fosse apenas ilusão sua. O cabelo era de Vlad, o Empalador, com tufos espetados no alto da testa. O pescoço estava envolto por uma corrente de moto – e não um modelo comprado na Urban Outfitters, mas a velha correia que impulsionara sua antiga 12 cilindros.
Levando-se tudo isso em consideração, ele mais se parecia com um ladrão que invadira a casa e estava preparado para destruir o lugar à procura de prata de lei, joias e eletrônicos portáteis.
A ironia era que esse papo furado gótico não era a parte de sua aparência que mais ofendia sua família. Na verdade, ele poderia ficar nu, pendurar um abajur na bunda e passear pelo primeiro andar imitando Jose Canseco* com a decoração da casa que sequer chegaria perto do real motivo que irritava seus pais.
Eram os seus olhos.
Um azul. Um verde.
Ops. Foi mal.
A glymera não gosta de defeitos. Não em sua porcelana, não nos jardins. Tampouco no papel de parede, nos tapetes e nas bancadas. Não na seda da roupa íntima, nem na lã de seus blazers, ou no chiffon de seus vestidos.
E, com certeza, nunca em seus filhos.
Com a irmã tudo bem – ok, exceto pelo "pequeno problema de peso" que, na verdade, era inexistente, e um ceceio que sua transição não curara –, ah, sim, e o fato de ela ter a personalidade da mãe deles. E essa porcaria não tinha como ser mudada. O irmão, por sua vez, era uma maldita estrela, o filho primogênito preparado para levar adiante a linhagem da família, reproduzindo-se num interlúdio muito cavalheiresco, sem gemidos, sem suor, com uma fêmea escolhida para ele pela família.
Inferno, o recipiente de esperma dele já estava à espera. Ele copularia assim que passasse pela transição...
– Como está se sentindo, filho? – perguntou o pai com hesitação.
– Cansado, senhor – respondeu uma voz profunda. – Mas isso vai ajudar.
Um calafrio percorreu a coluna de Harry. Aquilo não se parecia com seu irmão. Grave demais. Masculino demais. Muito...
Puta merda, o cara fizera a transição.
Nessa hora, seus Ed Hardys resolveram seguir em frente, adiantando-o até que ele conseguisse enxergar a sala de jantar. O pai estava sentado à cabeceira da mesa. Confere. A mãe em seu lugar adiante, oposta à porta de vaivém da cozinha. Confere. A irmã de frente para a porta da sala, faltando pouco para lamber o prato de tanta fome que sentia. Confere.
O macho cujas costas davam para Harry não fazia parte do cenário.
Luchas tinha dobrado de tamanho desde que Harry fora abordado por um doggen que lhe dissera para juntar suas coisas e ir para a casa de Louis.
Bem, isso explicava tudo. Ele deduzira que o pai finalmente cedera ao pedido que lhe fizera
semanas antes. Mas não, o homem só o queria fora da casa porque a transformação chegara para a carga genética do filho dourado.
Será que o irmão transou com a garota? Quem usaram para o sangue...?
O pai, um tipo que nunca demonstrava afeto, esticou a mão e deu um tapinha sem graça no antebraço de Luchas.
– Estamos muito orgulhosos de você. Você está... perfeito.
– Está mesmo – a mãe de Harry concordou. – Simplesmente perfeito. O seu irmão não está perfeito, Solange?
– Sim, ele está. Perfeito.
– E eu tenho algo para lhe dar – disse Lohstrong.
O macho pôs a mão dentro do bolso da jaqueta esportiva e retirou uma caixinha de veludo preta do tamanho de uma bola de golfe.
Emocionando-se, a mãe começou a enxugar os olhos.
– Isto é para você, meu filho precioso.
A caixa foi empurrada por sobre a toalha de mesa branca adamascada, e a mão, agora grande, de seu irmão a pegou e levantou a tampa.
Harry viu o dourado do outro lado do vestíbulo.
Enquanto todos à mesa permaneceram calados, o irmão fitou o anel de sinete, obviamente surpreso, enquanto a mãe continuava a enxugar os olhos, e até mesmo os do pai se umedeciam. E a irmã surrupiava um pãozinho da cesta.
– Obrigado, senhor – agradeceu Luchas ao colocar o anel no indicador.
– Serve, não é mesmo? – perguntou Lohstrong.
– Sim, senhor. Perfeitamente.
– Temos o mesmo tamanho, então.
Claro que sim.
No mesmo instante, o pai desviou o olhar, como se esperasse que o movimento dos olhos cuidasse da camada de lágrimas que atrapalhara sua visão.
E flagrou Harry à espreita do lado de fora da sala de jantar.
Houve um flash de reconhecimento. Não do tipo "como vai, filho?" ou "ah, que bom, meu outro filho chegou". Algo mais parecido como quando você anda pela grama e percebe um amontoado de cocô de cachorro tarde demais para não pisar nele.
O macho voltou a fitar a família, excluindo Harry.
Obviamente, a última coisa que Lohstrong queria era que tal momento histórico fosse arruinado – e foi por isso que, provavelmente, ele não fez os gestos para espantar o mal. Normalmente, todos na casa faziam esse ritual quando viam Harry. Não naquela noite. Papai não queria que os outros soubessem.
Harry voltou para junto da bolsa de lona. Passando o peso pelo ombro, seguiu até a escadaria da frente para ir ao quarto. A mãe preferia que ele tomasse a escadaria de serviço, mas, para isso, ele teria de atravessar todo aquele amor ali presente.
Seu quarto ficava o mais distante possível dos outros, bem na extrema direita. Muitas vezes, ele se perguntava por que não o mandavam logo ficar com os doggen – mas provavelmente a criadagem se demitiria.
Fechando-se no quarto, largou a mala no chão sem nenhum tapete e sentou-se na cama. Fitando sua única bagagem, deduziu que seria melhor lavar logo a roupa, já que havia uma sunga molhada ali.
As criadas se recusavam a tocar em suas roupas – como se o mal dentro dele permeasse as fibras dos seus jeans e camisetas. O lado bom era que, por nunca ser bem recebido em eventos formais, bastava simplesmente lavá-las e usá-las.
Descobriu que estava chorando quando fitou seus Ed Hardys e percebeu que havia algumas gotas de água bem no meio dos cadarços.
Jamais receberia um anel.
Ah, inferno... Como doía...
Ele esfregava o rosto com as palmas das mãos quando seu telefone tocou. Pegando-o de dentro da jaqueta de motoqueiro, teve que piscar algumas vezes para focar a visão.
Apertou o botão para aceitar a ligação, mas não atendeu.
– Acabei de saber – disse Louis do outro lado. – Como é que você está?
Harry abriu a boca para responder, o cérebro se debatendo com todo tipo de resposta: "Maravilha. Melhor impossível", "Pelo menos não sou 'gordo' como a minha irmã", "Não, não sei se o meu irmão transou".
Em vez disso, falou:
– Eles me fizeram sair de casa. Não quiseram que eu amaldiçoasse a transição. Acho que deu certo porque o cara parece estar muito bem.
Louis praguejou baixinho.
– Ah, e ele acabou de ganhar o anel. Meu pai deu... o anel dele.
O anel de sinete com o brasão da família, o símbolo que todos os machos de boas linhagens usavam para atestar o valor de sua ascendência.
– Vi quando Luchas o colocou no dedo – disse Harry, sentindo como se tivesse sido apunhalado por uma adaga que subia pelos braços. – Coube certinho. Ficou lindo. Mas sabe, né... Como se pudesse ser de outro jeito...
Nessa hora ele começou a soluçar.
Perdeu completamente o controle.
A terrível verdade era que debaixo do seu "foda-se" contracultural, ele queria que a família o amasse. Por mais afetada que a irmã fosse, por mais nerd que o irmão fosse, por mais reservados que os pais fossem, ele via o amor entre os quatro. Ele sentia o amor entre eles. Era um laço que unia aqueles indivíduos, um cordão invisível que ia de um coração ao outro, o comprometimento de se preocupar com tudo o que dizia respeito desde qualquer bobeira até os dramas mais verdadeiros e mortais. E a única coisa mais poderosa do que essa ligação era... sentir-se excluído dela.
Todos os malditos dias de sua vida.
A voz de Louis se fez ouvir acima do choro.
– Pode contar comigo. E eu sinto muito... Estou aqui para o que precisar... Apenas não faça nada estúpido, ok? Deixe-me ir aí...
Só mesmo Louis para saber que ele estava pensando em coisas que envolviam cordas e chuveiros.
Na verdade, a mão livre já abaixara para o cinto improvisado que ele mesmo confeccionara com um pedaço resistente de corda de náilon – porque seus pais não lhe davam dinheiro suficiente para roupas, e o cinto de verdade que ele possuíra se quebrara há vários anos.
Puxando-o, ele olhou para a porta fechada do banheiro. Tudo o que precisava fazer era amarrar a coisa no cano da parede – Deus bem sabia que aqueles canos de água tiveram utilidades nos tempos idos, quando as coisas eram fortes o suficiente para suportar um pouco de peso. Ele até tinha uma cadeira na qual podia subir para depois chutá-la debaixo de si.
– Preciso ir...
– Harry? Não desligue. Não ouse desligar na minha cara...
– Olha aqui, eu tenho que ir...
– Estou indo te encontrar agora – muita comoção do outro lado da linha, como se Louis estivesse se vestindo às pressas.
– Harry! Não desligue... Harry...


Jose Canseco, cubano,, ex-jogador profissional de baseball, foi campeão do World Series em 2000, jogando pelo New York Yankees. Em 2005, ele admitiu ter feito uso de esteroides anabolizantes.

Amante Finalmente| l.sOnde histórias criam vida. Descubra agora