Na entrevista de emprego que teve, ninguém lhe dissera que teria de lutar contra o diabo. Mas era o aconteceria. O que acontecia. Sempre.
O carro do uber o tinha trazido até o Conjunto Nacional, um comprido shopping, então caminhou por ele até a rodoviária de Brasília, que era o depósito das defesas do mal; caricaturas terríveis e vilãs, coisas que não gostavam de invasores vestidos de branco ou azul. Tinham as caras todas pintadas, as vozes transgredidas pelo mal da boca do povo. De nada adiantava lutar contra eles, sempre saía mais de algum lugar.
Foi uma travessia difícil passar por aquele povo, mas ele conseguiu, mal sabia como. A cada passo surgia um monstro novo, que o encarava com uma cara feia e aterrorizante.
Alguém deveria ter lhe contado que aquele era apenas o começo da diversão do diabo.
Escadas rolantes vagarosas o levavam ao novo térreo, reformado, cinza, e já sujo. Mais outra escada rolante e se via no subsolo. Lojas encardidas o assombravam, com pessoas mal-encaradas olhando e monstros acanhados na sarjeta, com um olhar de inveja ou de raiva, era difícil identificar se todos eles apareciam com a mesma cara sempre.
O ticket do metrô era desgastado, velho, sujo. Ele tinha medo de depositar o ticket na catraca, falhar, e ter de comprar outro ticket. Mas deu certo. Ele atravessou mais outra vez para então ter acesso às escadas rolantes que levavam a outro piso abaixo daquele, e em seguida para o metrô.
As pessoas o encaravam.
“Oras, parem”, pensava ele, tentando desviar o olhar de todas aquelas pessoas mal-encaradas. Mais parecia um garoto indefeso lá em baixo com tanta gente esquisita e diferente de si.
O metrô chegou.
Entrou.
Estava instantaneamente cheio. Porém, não lotado.
Arranjou um assento livre para se sentar.
E então o grito dos mortos começou.
AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHH!!!
VVVVVJJJJJJJJJUUUUIIIIÁÁÁ!!!
VVVJJJJJJJZZZZZZ...Gritos torturantes do que pareciam as vítimas do inferno. Gritos de socorro. De terror, de medo, de vontade de morrer, ou de fugir para qualquer outro lugar que não fosse onde se encontravam no momento.
A amostra do inferno passou. O túnel se abriu, dando espaço para a luz de Deus ou de quem quer que fosse a luz do bem. Mas não importava, dali alguns minutos estaria lá dentro com as vítimas, nas profundezas do inferno, procurando o que teria feito de errado na vida para ter que estar lá dentro. De novo. Ter que entrar lá dentro de novo. E de novo. E de novo. De segunda à sexta. Toda vez. Lá dentro. Sofrendo. Com o próprio diabo sussurrando-lhe nos ouvidos coisas desagradáveis ou gritando de longe o que deveria fazer ou ter feito.
Inferno! Iria para o inferno. Seu palavrão favorito.E os portões do inferno foram abertos automaticamente.
Ele entrou.
Pegou da maleta seu binóculo, uma faca, uma pistola e uma carta de baralho. Jogou a maleta em um canto qualquer.
O céu era vermelho. A terra era vermelha. Quando chovia, parecia sangue.
Tudo tinha cheiro de cigarro e cinzas.
Era tudo um amontoado de terra, rochas e pedras — até onde a vista alcançava. Alguns mini vulcões pintavam a vista e a tornavam um pouco menos monótona. A fumaça exalada por eles cheirava a cigarro. Lava escorria, laranja, incandescente, quente.— Bem, vamos matar o diabo hoje de novo... — a voz desanimada não combinava com o ambiente de desespero.
De repente usava um sobretudo. Guardou suas coisas, escondendo-as no próprio corpo, e pôs-se em movimento.
Caminhou bastante. Quem poderia dizer o quanto? Um relógio no céu marcava as horas. Haviam se passado alguns minutos, mas pareciam dias de caminhada constante sob um sol escaldante e nenhuma água. Por que sofria tanto? Pelo que pagava?
No fim de sua caminhada, subiu uma colina vermelha. No final dela, uma vista que se mostrava desagradável: o próprio diabo. E teria de matá-lo com as próprias mãos. Uma pistola e uma faca. Pegou o binóculo e o olhou mais de perto:
Era sempre o mesmo, mas os exames de rotina mandavam-no vê-lo à distância do mesmo jeito. E como era feio. Vermelho. Barba. Cavanhaque. Chifres pontudos erguiam-se da cabeça e seguiam-se horizontalmente por muito. Era gigante. Cabelos pretos espetados. Musculoso. Sem camisa. Peito peludo. Pernas peludas. Patas de bode, ou qualquer coisa que fosse. Exalava fumaça do nariz e cuspia fogo. Tinha cheiro de cigarro. A pistola não alcançava àquela distância. Teria que se aproximar.
Aproximou-se.
Um tiro, limpo, na testa.
O diabo cambaleou; foi para frente e depois para trás, então caiu; morto, contemplava o céu com olhos abertos, vermelhos e esbugalhados. Não parecia mais tão amedrontador. Então sorriu maliciosamente, engasgou-se, contorceu-se e ficou imóvel.
Ele se arrepiou e pôs-se a correr dali. Subiu pelas colinas vermelhas com grama rosada. Então encontrou a rodovia atrás de uma árvore seca e sem folhas. Era retorcida, como se o diabo a tivesse torcido e tirado a água dela para beber em um café amargo. Um gosto de morte da natureza no próprio café, isso tem a cara do diabo.
Ele atravessou metade da rodovia. Em seguida, começou a correr no meio dela, fugindo de milhões de carros que buzinavam e agrediam seus ouvidos. Não estava pronto para aquilo.
Atropelaram-no uma vez. Mas foi apenas um acidente de trabalho. Ele se levantou e voltou a correr. Não podiam alcançá-lo. Não novamente.
O fim da rodovia se teve com uma curva, uma ponte quebrada e um precipício. Ele saíra antes da curva. Os carros seguiram a curva. Caíram todos em explosões com cheiro de cigarro.
Ele atravessou várias lojas fechadas de móveis e eletrodomésticos. O céu agora se arroxeava. Monstros deitados encaravam-no novamente, com aquela cara fechada e olhar enganador. Então voltou à sua corrida. Atravessou um shopping em chamas. Um carro sem motorista quase o atropelou.
Mas no fim de tudo, conseguiu voltar para a linha do metrô. Achara sua maleta e agora esperava impaciente a volta para casa. Para achar que poderia fazer o tempo demorar mais e então demorar mais para voltar para o inferno. Não estava com vontade de matar o diabo de novo. Na verdade, nunca esteve. Mas o que poderia fazer? Ele tinha de ir lá. Estava escrito no papelzinho que o deixava comer. Estava escrito no silêncio daqueles que o rodeava. Estava escrito naquele artigo que dizia que ele teria uma vida boa.
Aliás, onde estava ela?
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Onde Estava Ela?
FantasyNa entrevista de emprego que teve, ninguém lhe dissera que teria de lutar contra o diabo. Mas era o aconteceria. E o que acontecia. Sempre.