Deitado na cama em meu novo lar na taverna, eu matutava sobre o dia que tivera. Não esperava que meu segundo encontro com aquela garota fosse daquele jeito e nem que eu imploraria para que ela me treinasse. Talvez fosse melhor ser cauteloso com ela, afinal, não sabia se podia confiar em uma estranha.
— Olá Jack, posso entrar? — Hughes o senhor estalajadeiro, batia na porta do quarto.
Falei para que entrasse. Ele parecia feliz em ter-me por perto, desde que o último rapaz que trabalhava na taverna tinha ido embora, não havia quem pudesse fazer os serviços mais pesados. O peso da idade os impossibilitava de fazer muitas coisas que eu podia resolver facilmente.
— Em que posso ajudar, senhor Hughes?
— Eu só vim saber se está tudo bem. Você chegou aqui todo machucado... — Ele esboçava uma expressão preocupada. — Não é a primeira vez que você aparece aqui nesse estado, há algo acontecendo? Talvez possamos ajudar se você falar.
— Me desculpe, mas não. Vocês não podem me ajudar. — Eu não conseguia o olhar nos olhos. Eu era agradecido por toda a sua ajuda, mas não confiava em mais ninguém.
Hughes deu de ombros e se sentou ao meu lado na cama. Em seguida, começou a falar:
— E os seus pais, onde eles estão?
— Eles se foram... — ainda cabisbaixo, respondi. Percebi que ele ficou um pouco incomodado com a minha resposta.
— Eu sinto muito. — Hughes colocou a mão sobre meu ombro. — Acredite, eu sei como dói perder alguém querido.
— Foi o seu filho, não é?
— Isso foi há um bom tempo — respondeu Hughes, encarando a parede quebradiça com um olhar distante. — Hoje ele seria um grande homem. — Ele fez uma pausa e continuou: — Vou te contar o que houve com Kellar.
— Não há necessidade, deve ser doloroso para o senhor — disse a Hughes, mesmo assim, ele continuou.
— Aconteceu antes mesmo dessa taverna existir. Exatamente no período da grande guerra dos cavaleiros. Kellar era um cavaleiro incrível. Um dos mais honrados que já existiram, um verdadeiro cavaleiro branco. — Os olhos de Hughes lacrimejavam ao lembrar de seu filho.
— Sério? — o interrompi. — Que honra ter tido um filho cavaleiro.
— Você também quer se tornar um, não é mesmo?
— Como sabe disso? — Arqueei as sobrancelhas.
— Por qual outro motivo um garoto como você viria sozinho até este lugar, justamente no período do exame? — Hughes soltou um fino sorriso entre seus lábios. — Não se engane, eu posso ser velho, mas conheço bastante deste mundo.
— Espera, o senhor é um nobre? Me disseram que é muito difícil se tornar um cavaleiro se você não é nobre.
— Eu, um nobre? Até parece. — Hughes soltou uma gargalhada. — Naquela época qualquer um que se esforçasse poderia se tornar um cavaleiro branco. Era uma época em que realmente existiam cavaleiros honrados.
— Entendo... — Abaixei a cabeça, um pouco chateado por ter nascido na época errada. — Mas por favor, continue — incitei, levantando a cabeça novamente.
— Bom, durante a guerra ele foi um dos soldados que mais se destacara em batalha — continuou Hughes pigarreando. — Kellar era um guerreiro formidável. Ele sempre voltava vitorioso de todas as suas batalhas. Para poder me aproximar de meu filho, resolvi me alistar também. Como não sabia lutar igual a ele, eu me alistei como cozinheiro do exército. Parece estranho um pai ficar no acampamento enquanto seu filho sai para lutar, mas era tudo o que eu podia fazer por ele. Poder alimentar meu filho depois de voltar de uma luta cansativa e tão difícil, me fazia sentir útil para ele, e isso me fazia feliz. — Lagrimas escorriam pelos olhos de Hughes. Eu ia interromper a história, pois parecia difícil para ele prosseguir. Mas ele continuou mesmo assim. — Ele lutou bravamente durante toda a guerra, até a última batalha. A última batalha foi a mais sangrenta de todas. Muitos cavaleiros morreram naquele dia. Dizem que vencemos aquela guerra, mas para mim, os verdadeiros derrotados fomos nós.
— E-eu... sinto muito por tudo isso. — Eu me sentia mal por ele, mas não sabia como poderia consolá-lo.
— Não tem por que se preocupar, garoto. Essas lágrimas são de orgulho e não de tristeza — disse Hughes, soltando um sorriso trêmulo.
Eu não podia acreditar no quanto eu era ingênuo. Durante todo aquele tempo, eu me martirizava por ter perdido quem eu amava, mas não percebi que tantas outras pessoas também passavam pelo mesmo. Ver a dor daquele homem, me fez ver que, no final, eu não estava sozinho. Haviam pessoas que partilhavam da mesma dor que a minha. Isso me fazia perceber que, me tornar um cavaleiro, não seria apenas por vingança ou motivos egoístas, mas para trazer justiça à aquelas pessoas.
Hughes enxugou as lágrimas e tomou fôlego para falar:
— Naquela última batalha eu o esperei como de costume. Fiz um belo almoço para ele e para todos os homens que voltavam da guerra. Estava feliz por saber que tínhamos vencido. Minha felicidade foi maior ainda quando eles despontaram no horizonte. Imaginava ver aqueles cavaleiros comemorando, felizes por vencerem a guerra, mas a cena fora outra. Muitos choravam e voltavam de cabeças baixas. Suas armaduras tingidas por sangue seco, suas faces tristes, era uma cena difícil de se ver. Alguns vinham carregados em macas e outros carregavam seus parceiros mortos em seus cavalos. — Hughes deu uma pequena pausa antes de continuar. — Eu esperei... esperei até o último homem. Na esperança de que Kellar tivesse sobrevivido, mas ele não estava lá. Ele nunca conseguira voltar daquela batalha. E o pior de tudo... nem mesmo seu corpo voltara. Eu não pude enterrá-lo dignamente. — Hughes me olhou nos olhos. — Sabe, garoto. No fim das contas é isso que a guerra nos traz. Sofrimento atrás de mais sofrimento.
Os olhos de Hughes agora me pareceram olhos cansados. Pude notar suas pesadas olheiras. Olhos de alguém que já viu tanta crueldade nesta vida, que simplesmente se cansou de tudo.
— Eu me lembro de ter ido até Sir Amik. — Hughes tomou fôlego antes de continuar. — Eu perguntei sobre o que acontecera com Kellar, mas ele parecia tão abalado quanto aqueles homens. Sua expressão em seu rosto me confirmara que nunca mais veria meu filho novamente. Depois daquilo, eu me retirei do exército dos cavaleiros. Eu e minha esposa resolvemos abrir uma taverna na cidade. Precisávamos seguir nossas vidas de algum jeito. Decidimos que faríamos o mesmo que eu fizera para o meu filho. Eu alimentaria os cavaleiros e os daria de beber, pois era assim que ele gostaria de ser tratado. Decidi que nunca mais veria estes cavaleiros chorando, como naquele dia. Eu os faria sorrir com a minha taverna.
Ao terminar de contar sua história, Hughes parecia um pouco mais alegre e sorridente, como se me contar tudo aquilo, tivesse o feito tirar um peso de seus ombros. Ele se levantou e foi até a porta. Por fim, se virou para mim e disse:
— Jack. Seja um cavaleiro tão bom quanto o meu filho. — Ele sorria.
— Eu juro. — Eu me levantei e o olhei nos olhos. — Eu juro que me tornarei o cavaleiro mais honrado deste reino.
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O Matador de Deuses - Tenebris
FantasyEm um mundo dominado por feras e bestas do pior tipo, cercado pela escuridão e morte, ainda há alguns que dizem haver esperança. Em meio aos sobreviventes deste mundo de trevas, no reino de Misalem, um homem ainda luta por um futuro melhor. Seu nome...