Parte I

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Na época em que essa história começou, ela estava ainda muito longe de se tornar uma lenda passada de pais cansados para filhos preguiçosos. De verdade, na época em que essa história começou, a história daquela menina ainda não estava nem perto de ser uma história.

Na época em que essa história começou, aquela menina ainda era uma menina de verdade, com cabelos de fogo e toda a vivacidade do mundo nas bochechas.

Fato incontestável, aquela nunca fora a mais conformada das garotas. Nunca gostara muito de ajudar no trabalho na fazenda. Também nunca levara muito jeito para aquilo. A má vontade tinha sua parcela de culpa, isso sim, mas a verdade é que aquela menina era delicada demais. Naquele mundo de gente robusta, era de se esperar que uma mulher conseguisse levar um bebê às costas e apurar o doce no tacho ao mesmo tempo, enquanto ela mal tinha forças para carregar dois baldes de água sem ter que sentar-se no meio do caminho esperando por ajuda.

Toda essa sutileza rendera-lhe o apelido de Cisne. Ninguém nem sabia ao certo quem começara com aquilo, assim como quase ninguém ainda lembrava seu nome real. Com as plantações crescendo,a terra para adubar, vacas para ordenhar e ovos para recolher, não havia também quem tivesse tempo de descobrir ou questionar muita coisa. Cisne ela ficou, pele branca de açúcar e brilhantes olhos negros de conta.

Com o tempo, Cisne aprendeu a manipular o fascínio que causava sua diferença. Aprendeu a tirar vantagem de suas sutilezas. Logo soube que não precisava de muito mais que um sorriso para ter todas as suas tarefas feitas. Cresceu volteando graciosamente pela vila, arrancando suspiros, favores e a dignidade dos meninos.

O pai de Cisne fazia vistas grossas à displicência da filha com suas responsabilidades. Era um homem ambicioso e via onde tudo aquilo poderia chegar. Logo viria o tempo em que Cisne teria idade para um casamento, e era dali que ele esperava sua aposentadoria em ovos de ouro.

Cisne tinha a índole do pai, ainda que com um tanto a mais de tempero. Sua ambição não se restringia às alianças douradas e às cercas da fazenda de algum senhor rico da região. Ela olhava longe. Longe, longe, além da estrada que deixava o vilarejo e perdia-se no horizonte, esperando uma oportunidade e antevendo o dia em que por ela seguiria sem ter que olhar para trás.

Um dia, o circo chegou à cidade vizinha. Cisne estava exultante. Nunca antes havia visto o circo. Esperou até o último dia do espetáculo para arrumar quem a levasse, num coche coberto para protegê-la do sol no caminho e lugares reservados na primeira fila. Por conta própria, levava também um plano bem maquinado de fugir com a trupe e ganhar o mundo, sem carta nem bilhete, sem lágrimas ou avisos.

Cisne assistiu a todo um espetáculo de luzes e sonho, mas foi no último número que toda a magia aconteceu. Um homem de fraque e cartola negros surgiu no centro do picadeiro, em meio a uma espessa fumaça que cheirava a tabaco e almíscar. "É um mágico!" - Cisne pensou, mas logo viu que se enganava.

A fumaça aos poucos foi se dissipando, e só assim Cisne pode perceber que o homem empunhava um chicote longo de couro, fazendo-o assobiar ameaçadoramente no ar. "Um domador?!" - questionou-se Cisne, sem enxergar nenhuma fera por ali.

A cartola do homem deixava seu rosto nas sombras. Cisne não podia ter certeza se ele sorria, mas distinguia a paixão obsessiva de um brilho ameaçador e hipnótico nos seus olhos, percorrendo a plateia. Por um milésimo de segundo, Cisne sentiu aquele olhar em suas estranhas, duas farpas de gelo congelando sua respiração.

-Agora! - o homem gritou de repente, e sua voz firme retumbou pela tenda alta.

Uma forma a mais apareceu ao seu lado e a plateia ecoou uma exclamação de assombro. Cisne abriu a boca, surpresa. Não era fera coisa nenhuma. Era uma menina, de vestido de chita colorido, cabelo escuro trançado em fitas, um grosso cordão de ouro no pescoço e uma cartola vermelha e pequenina na cabeça... ou então Cisne pensou que fosse, mas logo mudou de ideia.

CisneOnde histórias criam vida. Descubra agora