Parte II

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Um tranco repentino denunciou que o trailer entrava em movimento. Estavam deixando a cidade, e aquela ideia era tão aterrorizante que fazia sua barriga doer em pontadas de desespero.

Cisne podia sentir a corrente de ouro pulsar em seu pescoço, quente. E então ouviu um silvo agudo cortando o ar.

A parca luz amarelada de uma única lâmpada iluminou o outro extremo do trailer, delineando a sombra do domador, do outro lado das grades. Ele aproximou-se devagar, soturno. As pernas de Cisne amoleceram, mas ela se sentiu repentinamente corajosa. Devia haver algo que pudesse fazer para sair dali.

Quando o domador estava perto o suficiente, ela sorriu para ele, encantadora, porque sorrir era o melhor que sabia fazer. Sorriu e falou, e sua voz era doce como o trinado dos pássaros no verão:

-Deve estar havendo algum eng...

Não terminou a frase. O golpe certeiro do chicote atravessou as grades e atingiu-lhe em cheio a bochecha direita. O corte não foi profundo, mas queimava a pele e trouxe-lhe lágrimas aos olhos.

-Silêncio. - foi só o que o domador disse, e sua voz parecia queimar também. Queimava o espírito e a resistência de Cisne. Ele deu uma última olhada nas duas meninas, conferiu o cadeado e deu as costas para elas.

No extremo do trailer iluminado pela lâmpada havia também uma mesa e uma cadeira de madeira tosca, e foi lá que o domador instalou-se, entretendo-se rapidamente com alguns papeis enquanto o veículo sacolejava pela estrada de terra.

Cisne enterrou-se na palha e chorou, esfregando o sangue da bochecha. Chorou até os olhos doerem e o ar faltar, e então engatinhou até as grades e começou a sacudir-se nelas, com força, gritando:

-Ei! Você! Está me ouvindo?! Me tire daqui, me tire daqui agora!

Demorou apenas alguns segundos para que o domador estivesse ali, colado às grades, bem na frente de Cisne, abrindo o cadeado com muita rapidez. Em seu canto, a outra menina encolheu-se mais ainda.

Com uma força aterradora, o homem pegou Cisne pelos cabelos e arrastou-a para fora da jaula. Ergueu-a para que ficasse ereta, quase nas pontas dos pés, e sussurrou em seu ouvido:

-Silêncio, foi o que eu falei.

Cisne choramingava, contorcendo-se e tentando livrar-se da mão que a segurava com firmeza. E então ele a olhou bem no fundo dos olhos, e a corrente de ouro ardia tanto que Cisne sentiu como se ela se fundisse à sua pele, brasas que subiam pelo seu pescoço até a tampa da sua cabeça, queimando seu cérebro num inferno de dor lancinante que derretia seu espírito.

Pareceu durar um segundo ou uma vida inteira, mas parou, de repente, assim que o domador desviou os olhos dos seus. Cisne sentiu-se mole, desfigurada e oca, o corpo inerte como se nunca tivesse conhecido vontade própria.

O domador a conduziu de volta ao seu lugar pelo braço, sem dizer mais uma única palavra. A outra garota estava deitada, quieta e de olhos fechados. Cisne não saberia dizer se ela dormia ou se estava só fingindo. Deitou-se ela mesma de bruços na palha, sem forças para nada além de tentar procurar o sono que não veio.

Silêncio, foi essa então a primeira regra que Cisne aprendeu. O domador só falava com as duas para dar-lhes ordens. Também não permitia que as meninas conversassem muito entre elas, menos ainda com qualquer pessoa de fora. Isso era terminantemente proibido, Manon havia lhe dito na manhã que se seguiu à sua primeira noite.

Manon, fora assim que Cisne apelidara sua companheira, um pássaro pequeno, desconfiado e assutadiço. Ela pareceu gostar do nome, ou ao menos não fez nenhuma objeção, e ele acabou ficando. Mesmo o domador, que até então não chamava a menina de outra coisa além de "você" e "ela", acabou adotando o apelido depois de algum tempo.

CisneOnde histórias criam vida. Descubra agora