Dois

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Munay

Meu corpo pesa. Numa fração de segundos estou no chão.

Abro meus olhos e levanto rápido como reflexo da queda. Meu pai me empurrou e nesse momento se encontra gritando com a garota deitada em minha cama.

Suspiro pesado. O dia será recheado de relatórios a respeito do meu casamento.

- Tem cinco minutos para se aprontar, Munay. – Volto minha atenção aos berros do meu pai. Sei que preciso ser rápido.

Me preparo mentalmente para um de seus repetidos sermões. Olho a garota que está assustada na cama. Apenas mais uma. 

- Acho melhor você ir embora, rata – falo com minha carranca habitual. Não sou obrigado a tratá-la com carinho apenas por que transamos. 

Sinto o olhar indignado da garota rato, contudo não tenho tempo para lhe dar a devida importância. Apresso-me em colocar uma calça de couro e sair do quarto, abandonando a mulher sobre os lençóis, enquanto volto minha atenção ao caminho que leva a casa dos meus pais. Só posso constatar o quanto estou fedendo. Preciso de um banho.

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- Você cheira a rato. Dormiu com aquela garota de novo? – Levo meu segundo susto nessa manhã, quando Apuí (vulgo meu melhor amigo) me para no meio da aldeia. Ele é um lobo, obviamente tem o olfato apurado, mas não é nenhum segredo dentro da aldeia a minha vida libertina.

Continuo meu trajeto com Apuí ao meu lado. Ele sabe que precisa me segurar. Segurar o instinto animal que grita dentro de mim. Abro a porta e já encontro meus pais à mesa, minha mãe é a primeira a falar como sempre.

- Quem foi a vítima da noite passada?

- Não dormi com ninguém mãe – digo, ouvindo minha voz grave ecoar pela pequena cozinha. Nesse momento agradeço aos deuses por águias não terem o olfato aguçado, assim posso me fazer de desentendido e me safar da bronca. 

Obrigado deusa Killa. Louvada seja!

- Ora, não seja ridículo Munay! – meu pai esbraveja e sinto a mesa tremer com seu soco repentino. Me encolho levemente. Sempre me esqueço de sua presença, por ser tão silencioso.

Vejo minha mãe colocar a mão sobre a perna dele e sua expressão se suaviza no mesmo instante. 

É incrível assistir como apenas um toque da minha mãe pode derreter o homem enorme que é meu pai.

- Não se faça de bobo comigo, criança – minha mãe fala com calma, mas consigo sentir a irritação em sua voz. – Eu estou vendo as marcas roxas em seu pescoço. Vai me dizer que passou a noite em uma briga? – ter uma mãe águia é o mesmo que ter uma mulher com super visão dentro de casa. 

Odeio quando ela enxerga meu corpo como o curandeiro me examinando, usando esse sorriso irônico. É como tem certeza antes mesmo de saber o que aconteceu. Evidentemente sempre está certa.

- Nut'sa, ele fede – meu pai fala indignado. – Passou a noite com aquela garota outra vez – ainda não consigo entender a revolta dos meus pais quanto a esse assunto. Tenho apenas vinte anos. Ainda faltam dois anos para assumir a liderança da tribo, é pedir muito pra que esperem um pouco mais?

Não quero me casar com qualquer pessoa.

- Que maravilha, noite passada foi uma mulher! – Ela ataca com falso entusiasmo, e eu já estou a ponto de explodir. Olho para Apuí que está ao lado da porta em silencio, peço por ajuda, mas tudo que recebo é um balançar de ombros. Frouxo. – Já poso marcar a cerimônia? – volto minha atenção para a mesa quando ouço essa frase.

- Claro que não, mãe. Foram apenas três vezes. – eu realmente estou irritado. – Quero entender por que vocês ficam tanto no meu pé! Já tenho idade o suficiente para decidir meu futuro. Não preciso que meus pais façam isso por mim.

- Você sabe que um casamento vai melhorar sua imagem como líder. Nossa aldeia precisa de exemplos, e esses exemplos começam com o cacique! – Ver minha mãe endurecer a voz com qualquer pessoa é difícil e, comigo, é quase impossível. Confesso que me deixa um pouco assustado, contudo não me deixo abalar.

- Eu posso ser um bom líder sem estar casado – falo zangado. Minha carranca deve estar duas vezes pior. – Eu vou ser um bom líder, e não é um casamento que vai mudar isso – me levanto sem ter sequer tocado o café da manhã.

Necessito esfriar a cabeça e pensar um pouco longe de tudo.  Solto um suspiro pesado quando já estou do lado de fora.

- Você sabe que não precisava de tudo aquilo, não sabe? – escuto a voz de Apuí e estremeço. Não quero mais tocar nesse assunto.

- Sei que quero ficar sozinho. Apenas isso – falo com meu jeito rude de sempre, mas com Apuí eu não me preocupo, afinal não seria meu melhor amigo se não fosse acostumado ao meu jeito bruto.

Caminho a passos largos na direção do rio. Preciso urgentemente tirar esse cheiro fétido do corpo.

Chego à margem já retirando a calça que uso, para poder liberar meu urso. Sinto meu corpo relaxar e se expandir, fecho os olhos para aproveitar a sensação. Sinto minha mente nublar por alguns segundos, a pele dar lugar aos pelos, e as mãos aumentarem, dando forma as patas. 

O melhor momento do dia é quando eu me transformo. É relaxante, libertador...

Em questão de segundos minha transmutação está completa. Pulo na água e começo meu banho. O que mais acho interessante nas nossas transformações é o fato de nossa consciência permanecer humana, mesmo em nossa forma animal. Isso nos permite pensar racionalmente enquanto o animal aproveita seus minutos de liberdade. Mas isso não significa que não tenha consciência dentro de nós. Pelo contrário, eles tem muito domínio em nossas atitudes e principalmente na personalidade.

Observo o reflexo do grande urso pardo na água. Ele não tem nenhuma semelhança com meu corpo humano, exceto pelos olhos verdes e expressivos. Meus cabelos são negros e a barba espessa é minha marca registrada na aldeia, pelo fato de eu ser o único membro da tribo que a possui. Nem mesmo meu pai tem pelos no rosto. Apenas eu e ninguém mais.

Saio da água e me chacoalho pra tirar o excesso do copo. Adoro fazer isso. Me deito à margem  relembrando a discussão de pouco tempo atrás. A verdade é que eu não vejo problema em me casar, mas quero que seja com alguém especial, que me permita ter o mesmo que meus pais. Apenas não quero contar isso pra eles. Os conheço muito bem e sei que minha mãe é capaz de revirar o mundo tentando encontrar uma pessoa que seja 'perfeita', enquanto meu pai trabalharia como um louco planejando a cerimônia. E como todos os outros, eles se esquecem de que eu não quero uma pessoa perfeita. Porque nem mesmo eu sou perfeito.

Quero ter um futuro ao lado da pessoa que amo, e não com um estranho que passou a noite comigo. Ou pior, com uma pessoa engessada, que é perfeita apenas na visão dos meus pais. Desejo um futuro ao lado de alguém que possa me acalmar com um toque, e que me deixe aceso apenas com a voz. E eu sei que não vou encontrar isso aqui na aldeia. Eu conheço cada membro da tribo, cada nome, cada criança, jovem e adulto deste lugar. Meu companheiro não está aqui.

Claro que passo as noites com qualquer pessoa. Seja homem ou mulher, quase um terço da aldeia já passou por minha cama. Afinal, não é por que estou esperando meu prometido, que vou viver uma vida de celibatário. Deixo isso para os xamãs.

Sinto meu corpo tremer e meu urso dá um espirro. Me levanto e espreguiço, pensando em qual o melhor lado pra começar a caça de hoje. Sou bom caçador, sei que não vou demorar, por isso saio sem pressa utilizando meu olfato para encontrar uma boa caça.

Cerca de uma hora depois estou de volta à aldeia com dois cervos e um javali. Sei que meu povo não aceita comer mais do que o necessário. Os animais que são  sacrificados são nossos irmãos. Seria mais que crueldade matá-los apenas por prazer. Por isso sempre trago pouca caça, e pedimos aos deuses que abençoem o espirito do animal que nos serve de alimento. 

Já transformado e vestido, passo na cozinha da casa central para entregar a refeição de hoje. A próxima tarefa é ajudar na construção das novas casas.

E com isso eu passo o dia.

WANIWhere stories live. Discover now