Capítulo I - Promessa de tempestade

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Os dias têm se arrastado pesadamente como as nuvens carregadas que se aproximam, lançando suas enormes sombras sobre Riverwater. Há uma promessa de tempestade nos ventos do sul. Não devemos nos preocupar com isso, porque ela faz parte da natureza da vida. O que me faz pensar é o que fazer quando ela vier.

Admito que não sou muito fã de frio e inverno, excepcionalmente se estiver debaixo dum edredom escutando a playlist Dias de Chuva, com um chá quente de erva cidreira que mamãe costuma fazer para mim. É, bem clichê, eu sei. Mas o que é a minha vida senão a nostalgia e mesmice de sempre? Meus dias cinzas nunca se estenderam tanto, como um vírus parasita que se aloja teimosamente no corpo de alguém, sugando toda a vida. Eu quase posso sentir o tempo passar, fisicamente, como o vento.

Peguei a caneca, hesitei. Contemplava meu reflexo naquela água escura da superfície, enquanto respirava aquela fumaça adocicada que me dava um pouco de calor nos pulmões. Pude ver a melancolia embaçar meus olhos.

- Eliote! – Gritou mamãe, lá debaixo. Sua voz me despertou.

Larguei a caneta em cima dos papeis, rascunhos de alguma parte sentimental de mim que tentava captar. Vesti um casaco que estava esquecido na cama, e desci as escadas que davam do corredor do primeiro andar diretamente à sala de estar.

Talvez se meus pés não tivessem habituados em descer às pressas eu tivesse reparado nas vozes alheias que preenchiam o ambiente. Isso me daria uns minutos a mais para me preparar para lidar com pessoas, quem sabe eu fingisse nem escutar a mamãe. No entanto não seria o bastante. Nada seria, pois quando o destino quer, o universo trama e nós escorregamos nos detalhes direto para o meio do palco.

Exatamente assim que me senti quando me deparei pela primeira vez com o garoto cujo rumo da minha vida iria mudar.

Foi no exato momento que a maldita chuva desaguou torrentes de horas a fio.

Mamãe, e todos os outros rostos desconhecidos concentraram em mim. Senti minhas bochechas esquentarem.

- Ah, esse é o meu filho– Disse, enquanto virava para mim num sorriso brilhante – Eliote, essa é a senhorita Charlize McOy.

Apressei-me a cumprimentá-la com um leve aperto de mão. Ambas sentadas no sofá.

- Olá Eliote, muito prazer. Esses são meus filhos, Giullia – Apontou a garotinha que mexia num tablet ao seu lado. E finalmente: – Galiel. Somos seus novos vizinhos.

A senhorita McOy foi bastante simpática e naturalmente gentil. Ao contrário do seu filho, que ao ser apresentado apenas ergueu a mão num breve e sem graça aceno antes de voltar sua atenção para seu smartphone.

Confesso que fiquei aliviado por não me aproximar um passo a mais dele ao mesmo tempo que me senti desinteressante. Os McOy tinham uma pele morena, escura, negra, lábios grossos como um pecado tentador, uma beleza afrodisíaca numa cidade como Riverwater. Galiel havia me olhado no primeiro instante que apareci, e eu pude notar seus olhos, eram como cristais de avelã líquida. Algo que apenas ele, dentre a mãe e a irmãzinha, possuía. Estava na poltrona, inclinado para a tela do aparelho em suas mãos, e ainda assim podia-se concluir que era alto.

Nossas mães conversavam algo sobre a vizinhança, e de repente o trovão ribombou seguido dum clarão estremecedor. E como toda boa cidade interiorana, a energia cedeu lugar a uma vasta escuridão, acompanhada de silêncios e sussurros.

Tornou-se óbvio que os McOy demorariam a sair, a presença deles estava começando a incomodar. Confesso, a presença dele.

- Vocês estão bem, crianças? – Preocupou-se a senhorita McOy

Ficamos todos cegos pela súbita escuridão. Senti uma mão agarrar meu antebraço, e antes que pudesse reagir mamãe falou:

- Pode pegar as velas, querido?

Dirigi-me até a cozinha, com cautela, tateando as gavetas. Após achar as velas, apoiei nos castiçais e acendi. Levei a luz tremeluzente para sala, dando um ar de terror. Eu não estava me divertindo.

Mamãe apoiou o castiçal na mesinha central e todos ficamos ao redor. Podia imaginar a cena; estávamos ao redor duma fogueira, e a qualquer momento podiam puxar um violão, uma voz clichê e serena ressoaria num ritmo conhecido no qual todo coro acompanharia, palmas. Obviamente o que ocorreu foi algo sinistro. Estamos bem longe da capital, e isso não quer dizer que vivemos uma vida selvagem no meio do mato. Há um cinema aqui! Ouvimos um breve ranger na porta da sala, arranhões como um cão querendo entrar.

- Coitadinho! Deve ser um cãozinho com medo dos trovões – Mamãe adora animais, principalmente cães de rua – Vou deixa-lo entrar.

Foi até a porta desviando-se dos obstáculos, com segurança de dona de casa, de quem conhece os móveis nos devidos lugares.

- Não! – Espevitou-se, Galiel. A senhorita Verônica extasiou num instante – Digo, pode ser perigoso, senhora – Galiel apressou-se em se consertar antes que soasse errado, além de estranho. Guardou o iPhone no bolso enquanto se dirigia em direção à porta – Permita-me.

Ele era alto, sem dúvidas agora. Mamãe pareceu encolhida e ainda mais velha diante daquele garoto. Bem, ser mais alto que ela não era tão difícil, até eu que sou o mais baixo da turma de basquete consigo ultrapassá-la, mas a diferença entre eles os evidenciou de um extremo ao outro.

Os arranhões de repente cessaram ao tocar a maçaneta. Não abriu de vez, mas cautelosamente, o suficiente para apenas ele ver. Ficamos todos parados na expectativa de alguma narração do que via, porém nenhum músculo se mexeu por longos minutos. Dei a volta na poltrona, lá de trás onde dava para espiar, e foi aí, num lapso que me assombraria por muito tempo que tudo começou. Porque eu vi o que não podia se ver, e me era inestimável o preço a se pagar.

Na fração do relâmpago que precedeu na noite afora, sua luz revelara uma dezena de formas sombrias e opacas, silhuetas humanas esfumaçadas, em especial uma parada ante a porta que mirou meus olhos e sorriu antes de desaparecer no estrondoso trovão, deixando para trás apenas uma irregularidade que no ar onde estavam a pouco, que se desfazia com o vento, e a chuva sobrestou.

Galiel bateu a porta. Virou-se forçando um sorriso à luz de vela.

- Não era nada. Pensei ver um vulto... – Ele me encarou brevemente – Mas não era nada.

Foi tudo rápido demais. O arrepio transformou-se em angústia, a sensação entre o fantástico e o verossímil era confusa, fresca. Necessitava de reflexão, e enquanto eu refletia todos me encaravam.

- Meu bem? – Mamãe me trouxe à tona – Aconteceu algo?

Tarde demais, pensei. Sim, eu vi espíritos, como meu primo louco Nuhan, e eu estou com medo mãe.

- Não, eu só... estava pensando numas atividades que acabei de lembrar – Provavelmente eu estava pálido, por isso tomei a poltrona mais afastada da luz e me afundei nela.

Logo os McOy se foram e não era seguro acompanha-los até sua nova casa. Mas não havia carro estacionado, ou melhor, não havia carro algum na rua, então supus que fosse perto. Nós moramos numa rua sem saída. Há uma rotatória que margeava a floresta, cuja esta mesma sustentara uma pracinha em seu corpo redondo de pavimento, minúscula e sinistra composta por quatro banquinhos e um poste de luminária redonda que costumava piscar as vezes. Nossa casa é justamente a última, de frente à pracinha deserta, ao lado duma floresta sinistra.

Mamãe já havia tomado o número da senhorita McOy e pedido para "dar um sinal" quando chegassem. É, ela disse desse jeito, enquanto pedia desculpas por não poder fazer um bolo, dando todos os motivos plausíveis como se nenhum fosse o suficiente.

Eu me despedi de todos com um breve aceno, mas ele fez questão de não me olhar mais, nem dirigir palavra alguma, como um tipo de esnobe clichê.


Voltei para meu quarto, me joguei sobre a cama. Fechei os olhos para dormir quando a luz voltou.

O segredo de RiverwaterOnde histórias criam vida. Descubra agora