Wani

Tudo que vejo é o escuro que me cerca, e isso me assusta. Não sei o que está acontecendo. Vozes ecoam em minha cabeça. Eu as reconheço.

- A culpa é sua - eu ouço como um sussurro. - Você é a causa da morte dela.

As palavras ecoam por todo o lugar, aumentando gradativamente até se tornarem gritos.

- Você a matou! - a frase se repete em minha mente, evidenciando minha culpa novamente. - Você a matou.

- Por favor! - eu peço, mas não sei por que nem para quem. -Por favor! Não! - ah, eu me lembro. Peço para não mata-la. Imploro para que a libertem.

Torno a caminhar. Rapidamente me aproximo, vendo o local se iluminar. Estou na floresta aonde sua sentença foi decretada. Mais alguns passos e a agonia do dia me invade. Sinto a culpa outra vez.

Continuo meu trajeto, vendo o caminho se abrir em uma clareira. Dentro dela a aldeia se aperta. Todos desejam assistir ao julgamento. Eu quero que ele não aconteça.

Olho para a esquerda e observo o grande salgueiro. É nele que está amarrada. Ele é a arma usada. Ele é a punição do conselho.

Com a visão, meu coração acelera. Sinto o desespero tomar conta. Procuro seu rosto entre as folhagens escuras. Encontro em sua face aquele olhar, que demonstra quanto amor ela tem por mim. O olhar sem o desprezo que encontro nos outros.

Meu coração aperta. Se eu fosse menos egoísta, eu poderia ter fugido. Poderia tê-la deixado quando a situação ficou difícil. Mas não! Eu tinha que estar com ela, mesmo sabendo que isso aconteceria. Sou tão mesquinho...

Me aproximo da grande árvore. Preciso fazer algo, antes que a empurrem. A dor em meu peito cresce. Começo a correr, preciso tirá-la das cordas. A vontade de gritar é enorme.

- A culpa é minha - ninguém ouve a minha voz. - A culpa é minha - grito. Dessa vez ele me escuta, prendendo-me em seus braços.

- Claro que a culpa é sua. Você quem apareceu na vida dela! A culpa é sua aberração! Sua culpa. Você deveria morrer. Deveria estar no lugar dela. Amaldiçoado! Você é amaldiçoado - o nojo em suas voz é palpável.

Ele é apenas mais um que me odeia. Não lido com eles agora. Me forço a correr novamente. Ele continua a me prender. Sua força é maior do que a minha neste momento. Não consigo me mover.

- Pare de se debater! Você vai assistir calado. O conselho já determinou resultado - a voz dele me causa calafrios. Realmente detesto esse cara.

Ignoro sua frase e tento novamente sair do aperto dele. Forço meus músculos mais uma vez, tentando me livrar de seus braços sufocantes. Ouço a voz do ancião ecoar por toda a clareira. Meu corpo treme.

- Inti Tury, o conselho a condena pelos crimes: adoração ao deus negro, manipulação de magia proibida e pacto com forças ocultas - as palavras dele ecoam fundo dentro de minha mente. Este não é o motivo de sua condenação.

- Por tais crimes o conselho a considera culpada, tendo como pena, o castigo máximo: A forca.

Nossos olhares se encontram, e vejo uma lágrima solitária descer por seu rosto. Seu olhar permanece doce, exatamente como me recordo. Um olhar de amor e carinho. Um olhar de cuidado, que eu só conseguia com ela.

Começo a chorar também. Ela sendo inocente, foi sentenciada ao castigo mais drástico. Condenada por atos que nunca cometeu. Eu sei disso, assim como toda a aldeia.

Procuro pelo cacique. Só ele tem o poder para mudar essa sentença. Encaro seus olhos como uma última tentativa de fazê-lo reconsiderar. Ele me ignora, como todo meu povo. Sou um monstro para eles, por isso a condenaram.

Numa questão de segundos ela é empurrada. Vejo a corda esticar, enquanto seu corpo se debate em busca de oxigênio. Uma tentativa de acabar com a dor. Fito seus olhos,buscando pela vida que havia neles. Apenas constato a ausência do familiar brilho em suas íris.

Estava morta.

As lágrimas caem e eu não posso controlá-las. Foi ela quem cuidou de mim. Aceitou-me da maneira que vim ao mundo. Deu-me amor e carinho quando todos me evitavam. Me deu vida, enquanto os outros me davam o desprezo. E agora jazia sem vida bem diante dos meus olhos.

Morta por minha culpa.

Carrego nas costas esse peso. Sou o responsável pela morte da minha mãe.

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Acordo sentindo meu rosto molhado e os olhos ardendo. É sempre assim quando eu sonho com a morte dela - se é que eu posso chamar isso de sonho. Não passa de um uma memória fragmentada de um passado que gostaria de esquecer.

Tenho esses sonhos todos os dias desde que aconteceu. Faz parte da minha rotina: Sonhar com o pior dia da minha vida, acordar, me sentir culpado, pegar água no rio ainda pela madrugada, olhar as armadilhas de caça, voltar para casa e passar o resto do dia lendo os mesmos livros.

Não me sobra mais que isso pra fazer, já que não posso ir na aldeia. Sei que se eu for, vou ser enxotado - como todas as outras vezes que tentei acompanhar minha mãe. As pessoas de lá não me aceitam. Me veem como um amaldiçoado. Por esse e outros motivos eu sempre saí na madrugada para pegar água do rio.
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Me levanto. Preciso trocar de roupa e pegar os baldes. Sempre saio de casa com dois, e não encontro nenhuma dificuldade nisso, mesmo com meu defeito. Caminho em direção ao rio observando o céu, e como sempre em minha rotina, me alegro, pois é maravilhoso assistir ao nascer do sol todos os dias.

Trago meus baldes pra dentro da água e espero que eles encham, e então possa finalmente tomar meu banho. Vejo meu reflexo espelhado na água, e observo meu corpo magro, franzino e sem músculos. Tento sorrir, mas tudo que eu consigo é uma careta com lábios vermelhos de mais para um homem. Afasto a mexa de cabelo que cai sobre meus rosto, e vejo o contraste entre o castanho dos fios e o cinza dos meus olhos. Realmente... sou tão feio quanto dizem, e isso só piora com meu tom de pele mais claro que o dos outros.

Eu sempre entendi o motivo das pessoas não me aceitarem. Elas temem o que é estranho, o que é fora do padrão, e sou as duas coisas.

Levanto as mão pra tentar prender meu cabelo, e paro com o braço a minha frente. Observo o cotoco onde deveria estar minha mão direita, mas há apenas o pulso e antebraço. Mais um presente dos deuses para minha pessoa. Esse é outro motivo para não me aceitarem na aldeia. Eu sou defeituoso. Sempre fui.

Tomo meu banho com pressa, pois ainda tenho que desativar as armadilhas de caça. Volto pra casa apenas pra deixar os baldes e pegar a rede de pesca e a cesta para colher os frutos que existem perto do rio. Caminho lentamente até a primeira armadilha, apenas pra confirmar que ela nem mesmo foi ativada. Vou em direção a segunda armadilha que está vazia, indicando que seja qual fosse o animal, ele conseguiu escapar. O mesmo acontece com a terceira armadilha.

Solto um suspiro pesado. Essa primavera está fraca para caça, e tudo que nos sobra é a pesca. Por esse motivo eu sempre venho preparado, trazendo a rede comigo. Volto pra margem do rio e armo a rede pra lança-la. Espero apenas alguns minutos e já sei que posso puxá-la. Consegui três peixes. O suficiente para o dia de hoje. Caminho pelas margens do rio colhendo as pequenas frutas que vou comer no café da manhã e logo já estou voltando pra casa.

Suspiro novamente. É hora de dar início as leituras.

WANIWhere stories live. Discover now