Todo ser encarnado neste plano passa por esse processo de ruptura que acabei de descrever. Ele faz parte dos desafios que precisamos enfrentar durante a encarnação. A partir dessa cisão com a nossa verdadeira identidade, uma falsa identidade é criada. E para manter essa falsa identidade, desenvolvemos um verdadeiro arsenal bélico, constituído por diversos mecanismos de defesa e seus infinitos desdobramentos.
Guardiões do falso eu Os principais mecanismos que o ego utiliza para manter a falsa identidade são as matrizes do eu inferior. Tenho falado muito sobre isso, inclusive nos meus livros anteriores, mas vale a pena repassar:
Gula – Representa todo tipo de voracidade ou compulsão; os vícios mais densos e concretos, os mais fáceis de serem identificados e estudados. Pode ser compulsão por comer, comprar, falar, transar, entre outras coisas. Na base dessa matriz, está a crença de que, ao consumir ou engolir determinado elemento, você sacia a carência e o vazio existencial. A compulsão nasce da carência. Ela surge do rompimento com a essência através da repressão. A pessoa gulosa tenta suprir o buraco gerado pela cisão com a comida ou com qualquer outro elemento que possa substituir a falta de amor. Essa carência gera uma voracidade que, quando não é preenchida, se transforma em ansiedade.
Preguiça – A paralisação diante daquilo que precisa ser feito por causa de sentimentos suprimidos e congelados no sistema. A preguiça pode se manifestar de forma passiva ou ativa. Quando ela se manifesta de forma passiva, a pessoa não consegue fazer o que tem para fazer (e às vezes fica até sem conseguir sair da cama), o que gera um desequilíbrio na química do cérebro que se desdobra em depressão. E quando se manifesta de forma ativa, a pessoa faz muitas coisas (às vezes se torna workaholic), menos aquilo que realmente precisa ser feito.
Avareza – Necessidade de acúmulo. A pessoa se protege por trás daquilo que
acumula. Ela acredita, ao acumular, que estará protegida. Alguns se escondem por trás do dinheiro, mas tem gente que se esconde através de coisas enferrujadas que acha na rua ou até acumulando lixo. Ela acumula e não consegue soldar nada, nem mesmo um prego velho.
Inveja – O desejo de destruir o outro por acreditar que ele é superior. A pessoa invejosa não acredita ser capaz de chegar aonde o outro chegou, então precisa rebaixá-lo. E para fazer isso, faz uso da maledicência, que é falar mal do outro. A maledicência pode se manifestar de forma bastante intensa ou pode agir de maneiras muito sutis e difíceis de serem identificadas. Por exemplo, estando em um meio no qual a pessoa que você inveja é bastante considerada e admirada, você resolve soltar um veneno, falando mal dela como se estivesse fazendo um elogio: "Ela é uma pessoa muito legal, pena que tem tal defeito." Existe também outro aspecto da inveja que é de difícil compreensão: a autoinveja. Esse é um aspecto que está conectado ao orgulho e à luxúria. Quando a autoinveja está atuando, a pessoa começa a sabotar a si mesma. Nesse caso, a situação é mais complexa, porque trata-se de um aspecto extremamente difícil de identificar.
Ira – Uma extrema reatividade diante das situações. A pessoa que manifesta essa matriz acredita que, se falar mais alto que o outro, estará protegida. Ela grita e intimida o outro para sentir-se mais forte. Transmite a ideia de que é muito corajosa, mas na verdade está morrendo de medo.
Orgulho – O orgulhoso usa a superioridade para sentir-se protegido. A partir do orgulho, as matrizes começam a ficar mais sofisticadas, pois atuam de maneira cada vez mais sutil. Apesar de todas as matrizes terem sua complexidade, as anteriores são relativamente mais fáceis de lidar (com exceção da autoinveja). O orgulho é complexo, porque pode se manifestar de muitas maneiras diferentes. Alguns exemplos são: vaidade, soberba, timidez, complexo de inferioridade ou superioridade, vitimismo e falsa humildade.
Luxúria – Necessidade de obter poder através da energia sexual. A luxúria não está sempre ligada ao sexo em si, mas ao uso da sedução, que pode ocorrer de diversas formas. Muitas vezes, a necessidade de agradar o outro é uma forma de dominá-lo. Ela está intimamente conectada com a ira, pois a luxúria, quando não recebe o que quer, se transforma em ira.
Medo – São muitas as crenças ligadas ao medo. O medo está na base da estrutura do eu inferior, dando sustentação à ilusão de que somos carentes, de que somos somente um corpo. O medo é a antítese do amor.
Mentira – A mais sutil entre as matrizes, porque a mentira não é somente aquilo que você conta no dia a dia para "sair bem na foto", mas também o que dá
sustentação a todas as outras matrizes. Em última instância, a maior mentira é aquela que você conta para si mesmo: a mentira sobre a sua real identidade.
Máscaras Se acredita ser carente, é inevitável que você espere receber alguma coisa do outro. Inevitavelmente, você cria expectativas. Isso é um grande problema, porque, por mais maravilhoso que seja, você não tem garantias de que receberá o que quer. Por mais que seja hábil para convencer o outro a dar aquilo que você acha que precisa receber, você não tem garantia de que ele vai corresponder à sua expectativa.
Embora tudo que você procura fora de si mesmo esteja em seu interior, você não consegue enxergar essa realidade. O Ser que te habita é completo, ele não é carente de nada, mas a sua percepção encontra-se limitada por condicionamentos e crenças, então não consegue perceber essa realidade. E por causa disso, você se torna um mendigo que, para receber uma migalha de atenção, vende a alma. Finge ser algo que não é; usa máscaras para agradar e receber um pequeno olhar, um pequeno carinho. Dessa forma, desperdiça a vida tentando forçar o outro a amar você. Esse é um estado de aprisionamento, de dependência profunda, que gera raiva. E essa raiva se volta contra você mesmo.
Você sente raiva porque, de certa forma, sabe que está vendendo a si próprio. Está se prostituindo. Certa vez, alguém estava julgando a prostituição, e eu refleti: quem neste mundo não paga por sexo? Pelo menos as prostitutas deixam o preço bem claro. Perdoe-me a franqueza, mas eu preciso ser honesto. O meu trabalho é eliminar a mentira e alimentar a verdade. Pense: quem que não paga para receber atenção? Quem não paga para receber carinho?
Estando envolvido pela ideia da carência, você paga com a sua espontaneidade e com a sua liberdade. Deixa de ser quem realmente é e se especializa em ser qualquer coisa que roube a atenção do outro. Você se especializa em tirar energia do outro e desenvolve estratégias para mantê-lo na sua mão. Isso é escravidão!
Às vezes, para chamar atenção, você usa a máscara da vítima: "Eu vou me matar se você não olhar para mim." Às vezes, a máscara do autossuficiente: "Eu não preciso de você. Eu sou forte e dou conta da vida sozinho." E às vezes você, simplesmente, é indiferente: "Não estou nem aí, estou acima disso tudo." Esses exemplos são os padrões clássicos, mas cada um deles tem infinitos desdobramentos. Eles são apenas uma amostra daquilo que você faz para
conquistar, dominar e manipular o outro de acordo com a sua necessidade de ser amado. São estratégias para forçar o outro a amá-lo, porém isso é impossível, porque o amor verdadeiro só pode ser dado de graça. Mesmo quando somos bem-sucedidos nesse jogo e conseguimos a atenção do outro, sabemos que não foi espontâneo. Então não confiamos e nos sentimos inseguros, frustrados e continuamos criando novas estratégias.
Esse círculo vicioso tem como principal característica a necessidade de amor exclusivo. Não basta ser atendido nas suas expectativas, não basta ser amado. Você tem que ser amado com exclusividade. Tudo tem que ser para você. A pessoa que está com você não pode olhar para o lado. Ela precisa olhar para você 24 horas por dia. Nesse caso, como confiar e relaxar? Não é possível estar no controle o tempo todo.
Perceba como esse jogo é uma grande escravidão. Mas essa escravidão é criada pela mente para sustentar a falsa identidade. É o falso eu que acredita na carência. Ele acredita ser um mendigo e se torna um pedinte de atenção. E isso gera o que é, de fato, a maior miséria do ser humano: a carência afetiva. Essa é uma doença emocional que distorce a percepção da realidade. E nessa realidade limitada criada pelo ego, você depende da aprovação, do reconhecimento e da consideração do outro. O filósofo Jean-Paul Sartre disse: "O inferno são os outros." Nesse caso, o outro se torna o motivo da sua ansiedade, da sua tristeza e do seu estresse. Mas quem é o outro? Quem é esse outro que você considera tão importante? Não será somente uma projeção do falso eu?
Falso sucesso Como já vimos, o ego tem um papel importante na evolução da consciência humana: ele é quem realiza a jornada. Para existirmos neste plano e realizarmos nossa missão, precisamos de um ego. Ele é o nosso veículo e também um mediador entre o mundo interno e o mundo externo. Através dele, a alma pode experimentar a matéria e se expressar no mundo. E o ego, por sua vez, tem uma programação que é feita com base em uma série de inputs a respeito do que ele precisa fazer para ser importante, bem-sucedido e próspero. O que determina o programa do ego é a necessidade de ter poder e sucesso para agradar e ser reconhecido.
Mas, afinal, o que é ter sucesso? O verdadeiro sucesso diz respeito à realização do propósito da alma, mas a maioria das pessoas acredita que o propósito é a realização do ego. Como vimos,
o ego tem um programa que é construído com base em crenças herdadas do mundo exterior. E, na maioria das vezes, esse programa não tem nenhuma conexão com o programa da alma. Então muitas vezes a pessoa está realizada externamente, mas ainda se sente vazia e frustrada. O que ocorre é que o ego se especializou em determinada coisa, aprendeu a se mover no mundo e com isso conquistou sucesso material. A pessoa se tornou especialista no fazer, mas não no ser. Entretanto, a completude somente é alcançada quando o ser e o fazer se alinham. E esse alinhamento só ocorre quando o propósito interno (da alma) se manifesta também externamente.
Outra forma de ver o ego é como um personagem. Revestido de um corpo, ele é o protagonista da história da nossa encarnação. Esse personagem é quem experimenta a vida humana, vive situações e absorve os aprendizados. Nós não somos esse personagem ou esse corpo, nós somos o espírito que está por trás dessa roupagem, porém, no desenrolar do enredo da vida, o ego vai se fortalecendo, e o personagem vai sendo incorporado de tal maneira que passamos a acreditar que somos o personagem.
Essa nova identidade com a qual nos identificamos gera um constante sentimento de angústia e desencaixe, o que alguns interpretam como uma sensação de vazio. É como se algo sempre estivesse faltando. Isso gera a impressão de que algo ainda precisa ser feito ou conquistado.
Estamos sempre insatisfeitos, querendo mais, pois nada pode preencher o vazio de não sermos quem somos. Mas durante um período não temos consciência disso e acabamos construindo toda a nossa vida com base nessa identidade forjada. E a partir dela conseguimos muitas coisas. Podemos construir verdadeiros impérios, conquistar muito sucesso, fama, dinheiro e poder, mas não podemos conquistar a verdadeira felicidade. Isso que estou dizendo não é novidade. Aliás, é senso comum dizer que "dinheiro não traz felicidade", mas o fato é que no fundo acreditamos que a felicidade vem daí.
Então nós lutamos pelo dinheiro e, dessa maneira, até conquistamos uma certa alegria, mas uma alegria passageira, tão frágil quanto uma chama ao vento. Essa é uma felicidade sazonal, que vem e vai de acordo com a tendência da estação, de acordo com a moda. Você compra um carro novo, e isso te faz muito feliz até o momento em que um novo modelo é lançado, ou até o momento em que o seu colega de trabalho compra um carro melhor. Você se apaixona e, por alguns meses ou semanas, fica em êxtase. Até que o outro começa a chegar mais perto, e você começa a ver que ele não era tão perfeito como você imaginava. A sua felicidade dura apenas enquanto o outro corresponde às suas expectativas.
Enquanto o outro está ali do seu lado, olhando só para você e te dando toda atenção, você se sente muito importante e confiante, mas basta o outro dar uma olhadinha para o lado para que você volte a se sentir um miserável. Se a sua felicidade depende do outro, se tudo que você conquista é para ser importante para o outro, isso não é felicidade, é dependência.
A verdadeira felicidade só pode nascer daquilo que é real, do que permanece. E aquilo que é real nasce da plenitude interior. É quando podemos nos sentir completos por sermos o que somos. E isso só é possível quando podemos manifestar o propósito da nossa alma. Esse é o verdadeiro sucesso – é um sentimento de satisfação, de preenchimento, de estar no lugar certo. Quando isso acontece, nos harmonizamos com o fluxo da vida e, naturalmente, temos nossas necessidades atendidas. Tudo melhora, inclusive a vida material. A prosperidade, quando é fruto do encontro consigo mesmo, é um presente divino que está a serviço do propósito maior. Mas enquanto não tocamos esse núcleo interno, tudo aquilo que produzimos e construímos é para fugir de algo ou para nos protegermos de alguma coisa.
Falsa riqueza Muitas vezes, buscamos freneticamente a riqueza material para encobrirmos a pobreza que nos habita. E às vezes o karma permite que essa riqueza seja construída na matéria. No entanto, se a riqueza não tem lastro na verdade (se não é um produto da manifestação da plenitude da alma, mas sim um produto do medo da escassez), inevitavelmente, ela irá desmoronar. Esse tipo de riqueza não tem alma, pois não tem lastro no coração. Ela pode trazer uma alegria passageira, mas não gera paz. Muito pelo contrário: pode se tornar um fardo. Muitos conquistam fortunas, mas não conseguem relaxar para usufruir delas, pois estão sempre com medo de perder alguma coisa. Trata-se de uma riqueza que tem base na avareza. Alguns se tornam escravos da ideia de que as pessoas gostam deles somente por causa do que eles têm – e às vezes isso é verdade. Porque essas pessoas se preocuparam somente em ter, e não em ser.
Essa riqueza sem alma, sem lastro no coração, em algum momento, precisará cair. Porque tudo que é construído com base na mentira, inevitavelmente, precisará ser desconstruído. A essência da experiência humana é a expansão da consciência, por isso tudo que construímos precisa ter bases sólidas no mundo interno. Um castelo de areia não fica em pé quando a maré sobe. Para ficar em pé, ele precisa ter uma fundação sólida e resistente, o que significa que ela precisa
ser verdadeira. Para isso, precisamos remover os mecanismos de defesa que estão a serviço da mentira – a mentira de que você é carente de amor. E isso só é possível através do autoconhecimento.
Não há nada de errado com a riqueza. O problema é a ausência de si mesmo. O que você conquistou lá fora não é um problema. O problema é não conquistar a si próprio.
Autoconhecimento é sinônimo de lembrança de si mesmo. Quando lembramos da nossa identidade real, retornamos automaticamente ao caminho do coração, que é o programa da nossa alma. Esse é o encaixe, o alinhamento ao qual me refiro. Porque, ao nos desviarmos do caminho do coração, passamos a nos sentir desencaixados. Se não estamos seguindo o programa da nossa alma, não importa o tamanho do sucesso que conquistamos no mundo, continuamos carregando uma angústia. Muitas vezes não percebemos, pois estamos muito envolvidos na luta pelo sucesso ou pela sobrevivência, mas estamos sempre ansiosos, abatidos, tristes... Desencaixados.
Às vezes você tem um lampejo de consciência e percebe que algo está errado. Percebe que talvez seja necessário encontrar outro caminho para a sua vida, mas a mente está tão carregada de informações vindas de fora, tão contaminada pelas crenças sobre o que é certo e o que é errado, que você fica confuso e perdido. Mesmo assim, segue em frente, insatisfeito, mas sem saber para onde ir. Sabe que tem alguma coisa errada, mas não consegue ainda identificar o que é, porque, aparentemente, não há nada fora do lugar. Você tem uma ótima casa, uma bela família, um carrão na garagem, um emprego estável... Não há motivo para insatisfação! Cada vez que a angústia bate à sua porta, você finge que não a vê e tenta fugir. E foge através das mais diversas distrações: internet, televisão, compras... Necessidades simbólicas são criadas para amortecer a dor que está por trás dessa ansiedade. Essas necessidades se transformam em vícios que funcionam como amortecedores da consciência, por meio dos quais você guarda nos porões do inconsciente aqueles conteúdos que foram negados.
Mecanismos de amortecimento Vamos compreender melhor o que é isso que estou chamando de "amortecedor". Essa é uma palavra que costumo usar para descrever um processo de anestesia interna. O amortecimento é uma forma de retirar algo do nosso campo de percepção, uma maneira de rebaixar a consciência. Trata-se de um mecanismo de fuga da realidade similar ao processo de negação que descrevi anteriormente,
mas que atua na psique humana em momentos e níveis de profundidade diferentes.
A negação é quando somos levados a romper com a nossa naturalidade, é uma forma de anestesiar a dor gerada pela ruptura com a nossa essência. A energia que utilizamos para anestesiar essa dor original é a nossa energia vital, o próprio substrato do prazer. Nós utilizamos a própria energia do prazer para amenizar o nosso sofrimento, e dessa maneira ocorre uma ligação entre o prazer e o sofrimento. Em outras palavras, passamos a sentir prazer em sofrer. E essa é uma das razões pelas quais o sofrimento se perpetua neste planeta.
No amortecimento, a energia é retirada do prazer que determinado objeto ou situação nos traz. O mecanismo é o mesmo, mas trata-se de um nível mais superficial, uma camada sobreposta. Os amortecedores servem para manter no inconsciente aqueles conteúdos que, na infância, foram ali guardados através da negação. Mas justamente por constituírem uma camada mais superficial, eles são mais facilmente identificáveis através da auto-observação.
Os vícios são os amortecedores mais óbvios, porém qualquer coisa pode se tornar um amortecedor. Qualquer objeto, situação ou coisa que façamos pode ser utilizado dessa maneira. E isso vai depender da nossa atitude perante a vida. A cada situação, temos a chance de escolher se vamos usar o que a vida está nos oferecendo como um amortecedor ou como um despertador da consciência. Sempre temos a escolha de cultivar o sofrimento ou de aproveitar a situação para crescer e nos libertarmos dele. Essa escolha depende da nossa maturidade e disposição para tomar as rédeas do nosso próprio destino.
Existem diversas classes de amortecedores que têm a função de adormecer diferentes aspectos da consciência. Alguns são mais grosseiros e mais fáceis de identificar, como os vícios em cigarro e álcool, por exemplo. Outros são mais difíceis de identificar, pois, normalmente, se confundem com algo positivo, como o fazer compulsivo e o fazer sem presença.
Num mundo em que a corrida pelo sucesso e a competição tornaram-se comportamentos normais, o fazer compulsivo tornou-se uma virtude. Neste mundo, a pessoa que não tem essa compulsão é muitas vezes vista como preguiçosa. Entretanto, assim como a preguiça, o fazer compulsivo pode estar a serviço do adormecimento da consciência. Enquanto a preguiça é uma paralisia, um congelamento interno que tem a função de manter sentimentos negados, o fazer compulsivo é um excesso de movimento que serve para a mesma coisa.
O fazer sem presença é outro aspecto do fazer compulsivo. Se você não colocar a alma naquilo que está realizando, essa ação se torna um passatempo.
Não importa qual seja a atividade, se não estiver total na ação, ela será apenas uma distração. Nesse sentido, até mesmo o autoconhecimento e a prática espiritual podem ser amortecedores. Aquilo que teria a função de despertar a consciência se torna uma forma de adormecê-la. Isso ocorre quando você repete um mantra e realiza determinados rituais espirituais de forma mecânica, ou quando desenvolve o vício psicanalítico de ficar analisando tudo. Você acha que está presente, mas trata-se de um ato mecânico, um hábito. Pensa estar lúcido, mas, na verdade, está cada vez mais longe da realidade – você está fugindo desesperadamente dela. Está preso nos jogos da mente.
Quando digo "colocar a alma" na ação, quero dizer que essa ação precisa ser movida por um propósito – o propósito da alma. As pessoas estão fazendo muitas coisas no mundo, mas nenhuma dessas coisas tem conexão com o seu propósito. O fazer tornou-se compulsivo justamente porque está sendo utilizado como um amortecedor da angústia existencial. Esse fazer se transformou em uma maneira de sobreviver, um passatempo até que a morte chegue. Muitos estão nessa situação, pois se acostumaram e se acomodaram assim. Alguns passarão a vida esquecidos de que, em algum momento, tiveram o sonho de realizar algo. Aqui estou me referindo ao sonho como uma revelação do propósito da alma, como um comando do Eu superior. Alguns se esquecem de que, algum dia, receberam esse comando e, simplesmente, passam a fazer alguma coisa para sobreviver. Alguns fazem algo para alimentar a máscara e cristalizar o ego, para conquistar poder. Essa ação, no entanto, é compulsiva e completamente desconectada do propósito da alma. É um fazer sem presença. Tudo é realizado pela simples força do hábito.
Independente da sua natureza, o desejo é o que mantém os vícios e os amortecedores. Ele é um poço sem fundo: quanto mais realizamos, mais temos desejos. Isso ocorre porque eles nascem da carência, e a carência não pode ser suprida de fora para dentro. Ela é um estado emocional no qual acreditamos não ter o que precisamos. O que pode nos libertar desse estado é o reconhecimento de que tudo que estamos buscando compulsivamente fora de nós existe em abundância dentro de nós.
Vimos anteriormente que, em algum momento da nossa jornada, nós perdemos a consciência da fonte da vida que nos habita. Essa fonte que nutre e supre todas as nossas necessidades está dentro de nós, mas nos esquecemos dessa verdade. Isso gera uma profunda sensação de falta, que é a carência. E a carência faz com que nos tornemos pedintes enquanto permanecemos sentados sobre um baú de diamantes.
Costumo usar o baú como metáfora para a nossa riqueza interior, como um símbolo que representa essa fonte de onde vem tudo de que necessitamos. Ele é o campo da potencialidade pura, um lugar onde tudo é possível e onde nada falta.
Amortecedores clássicos Os principais amortecedores que impedem o despertar da consciência são o sexo, o dinheiro e a comida, mas, obviamente, esses três elementos são parte da experiência humana na Terra. Na verdade, eles também são instrumentos de desenvolvimento. Entretanto, por causa das distorções, eles se tornam amortecedores. Uma distorção ocorre quando o eu inferior se apropria de algo. Quando o medo e o ódio se apoderam de um instrumento legítimo de desenvolvimento, este se torna nocivo.
A comida, o sexo e o poder são forças que foram desvirtuadas e passaram a ser usadas para abrandar as dores e as angústias latentes do ser humano, por isso costumo chamá-los de "amortecedores clássicos". Esses três elementos têm um enorme poder de adormecer a consciência.
Comida – nossa vida social gira em torno dela. Nossa rotina diária é programada de acordo com as nossas refeições. Comer é uma das principais formas de lazer das pessoas, e uma das poucas fontes de prazer para muita gente. O interessante é ver que, enquanto muitos passam fome, alguns estão sofrendo por não conseguirem comer menos. Alguns vivem em função da falta; outros, em função da fartura de alimento. Poucos compreendem o poder que a comida exerce em nossas vidas, não somente pelas razões que acabei de mencionar, mas também por ela ser o nosso combustível. Nosso corpo é composto pelos alimentos e se move a partir da energia que eles proporcionam. O que comemos transforma-se no nosso corpo e, nesse sentido, nós, literalmente, somos o que comemos. Apesar de a ciência, há pouco tempo, ter conseguido medir a influência do que ingerimos, até mesmo no que diz respeito às mutações genéticas, essa dimensão da vida humana ainda é um mistério para nós.
Sexo – uma das grandes compulsões da humanidade. Você pode até não fazer sexo, mas não tira ele da cabeça. Aliás, é justamente por reprimir o desejo sexual que o ser humano tornou-se dependente da pornografia e das distorções da sexualidade. Costumo dizer que a luxúria é a rainha desse mundo. Mas quando falo de luxúria, não estou fazendo um julgamento moral, e sim me referindo ao uso da energia sexual para manipular, dominar e obter poder sobre o outro. Não há nada de errado com o sexo. Ele é natural. O problema está nas distorções e
perversões sexuais. Elas são o grande entorpecente.
Poder – nosso maior vício é o desejo de poder, principalmente na forma do dinheiro. Não é necessário falar muito para concordarmos que o ser humano é completamente dependente do dinheiro. Se a luxúria é a rainha deste mundo, o dinheiro é o rei. Dinheiro é sinônimo de poder. Através dele, você compra aquilo que deseja, e isso pode incluir indivíduos. As pessoas vivem para ganhar dinheiro, enquanto deveriam ganhar dinheiro para viver. Elas têm muito para gastar, mas não têm tempo para isso. O dinheiro tornou-se o meio e o fim. Para muitos, além de ter dinheiro, sucesso significa também ter um cargo importante, ter influência sobre muitas pessoas ou ter fama.
A compreensão sobre os amortecedores[1] é essencial para que possamos tomar consciência daquilo que nos mantém distanciados da verdade. Mas também é importante compreender que não estou julgando ou criticando o uso dessas ferramentas de amortecimento. Entendo que às vezes a dor é tão intensa que você não dá conta. Quando a dor de cabeça é muito forte, normalmente é preciso tomar um analgésico, mas, se a dor persiste, é necessário procurar a sua causa. O mesmo ocorre no nível emocional: você utiliza determinado recurso para amortecer a dor até que possa construir uma estrutura emocional sólida capaz de suportá-la. Mas por que o contato com a dor é importante? Porque nesse núcleo de dor está a causa da doença e, portanto, a cura. O problema é quando você se torna viciado no analgésico e não quer mais deixar de usá-lo. Assim, você fecha o acesso ao núcleo da dor e inibe a possibilidade de cura. Estando sob o efeito de anestésicos, a impressão é a de que tudo está bem, de que tudo está "normal". Você não está sentindo a dor e por isso acredita estar saudável, mas na verdade está ficando cada vez mais doente.
O vício, não importa qual seja, é um amortecedor que está a serviço da proteção de apegos. Não importa qual seja o seu vício. Ao se tornar um viciado, você está se protegendo e ao mesmo tempo fugindo de alguma coisa. No mais profundo, está fugindo de si mesmo. Por alguma razão, existe um medo de olhar para dentro de si e enxergar a realidade. Talvez você tenha vergonha de alguma coisa. Talvez sinta medo de ver que toda a sua vida foi construída a partir de uma fantasia, uma ficção.
O fato é que, em algum momento, para poder lidar com a dor, você criou uma história e passou a viver nela. Essa foi a forma que você encontrou para aliviar a dor por ter sido reprimido, humilhado, esquecido, abandonado, rejeitado... Então você se tornou o personagem principal dessa história e passou a acreditar que é esse personagem. Com o passar do tempo, foi se apegando aos
elementos da narrativa criada.
Boa parte das histórias tem no mínimo três personagens: um herói, um vilão e uma vítima. E dependendo da fase da sua vida, você transita entre esses diferentes papéis. Alguns passam a vida inteira em um único papel, porque, nesse caso, o amortecedor está sendo eficiente. Entretanto, na maioria dos casos, o amortecedor vai perdendo a força, e você precisa mudar de personagem. Há sempre uma necessidade de mudança. Mas estando apegado ao papel, você se sente constantemente ameaçado. Está sempre com medo. E o medo é proporcional à dimensão do seu apego. Quando a vida o convida a fazer uma mudança, ela é vista como um perigo. Mas qual é o perigo? O maior perigo é descobrir que a história que você sempre acreditou ser a sua vida é apenas uma invenção da mente.
Os amortecedores são utilizados para anestesiar e ao mesmo tempo para remover o medo. Mas você tem medo de perder as suas conquistas justamente porque elas são os seus anestésicos. As suas feridas ainda estão abertas, uma vez que, não tendo condições de lidar com elas, você precisou negá-las. Você não percebe esse processo interno por causa da anestesia, mas as dores do passado estão lá, influenciando a sua vida atual. Sem ter consciência disso, sua vida é impulsionada pelo passado e suas escolhas atuais são influenciadas por ele.
Normose Certa vez, uma pessoa me perguntou: "Ok, eu estou mesmo viciado. Estou viciado em sexo, em álcool, em pornografia... Mas se está tudo bem na minha vida, por que tenho que mudar alguma coisa? Por que eu tenho que ir atrás da dor? Por que não posso continuar assim?"
Um dos sintomas mais comuns do profundo amortecimento no qual o ser humano se encontra é a normose, uma doença psíquica cuja principal característica é um estado quase hipnótico no qual a pessoa acredita que tudo está absolutamente "normal": a corrupção é normal, a violência é normal, contar uma "mentirinha" é normal; a traição é normal, a competição, o fingimento, a trapaça, o engarrafamento... Tudo é normal. Os seus relacionamentos são fúteis e não duram mais do que algumas semanas, mas isso é normal; você passa mais tempo na internet procurando fotos de mulheres do que com a sua própria companheira, mas isso é normal; você não consegue ficar alegre em uma festa sem beber álcool, mas isso é normal; o planeta está sendo destruído, os animais estão sendo mortos, o lixo que produzimos está sendo enviado para o espaço,
nossos alimentos estão contaminados... Mas está tudo bem na sua vida, porque tudo é normal!
Então a resposta é sim, você pode continuar vivendo dessa maneira. Durante algum tempo, você pode escolher viver anestesiado, pelo menos até o momento em que o karma bater à porta, ou seja, até que o efeito das suas ações comece a aparecer na sua vida. E esse efeito pode surgir de diversas maneiras: na forma de uma perda, uma doença, uma frustração, um acidente, ou até mesmo como uma paixão. Vida é movimento, e tudo está em constante transformação. Chega o momento em que a vida traz um desafio que faz com que você queira se mover.
Durante algum tempo, é provável que você consiga levar a vida com certo nível de amortecimento (aliás, alguns permanecem assim por toda a existência), até que algum acontecimento importante o surpreende e você se assusta. Começa a se sentir desconfortável. Passa a sentir uma angústia, uma inquietude sem explicação. Então surgem os questionamentos em torno do sentido da vida. Você percebe que não é feliz apesar de tudo estar "normal", de tudo estar "bem". E quanto mais envelhece mais triste fica, porque toma consciência de que conquistou muitas coisas, mas ainda não conquistou a si mesmo. Quando essa inquietação bate à sua porta, vem a pergunta: "O que eu fiz com a minha vida? Eu construí casas, comprei coisas, adquiri cultura, mas ainda não sei quem sou, não sei por que estou aqui".
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Propósito - A coragem de ser quem somos.
Spiritual"Saber qual é o propósito é saber o que viemos fazer aqui; e o que viemos fazer aqui está intimamente relacionado àquilo que essencialmente somos, ou seja, o programa individual da alma está relacionado à consciência do Ser. Assim como a laranjeira...