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O homicida foi livre por graça régia.não sei que terra da mourisma; glória, na verdade, um pouco
ardente; mas de tal monta que os descendentes do general frito se
assinaram Caldeirões.
A dama do paço foi ditosa com o marido. Molestavam-na saudades da corte, das pompas das câmaras reais, e dos amores de sua
feição e molde, que imolou ao capricho da rainha. Este desgostoso
viver, porém, não empeceu que se reproduzissem em dois filhos e
três meninas. O mais velho era Manuel, o segundo Simão; das
meninas uma era Maria, a segunda Ana, e a última tinha o nome
de sua mãe, e alguns traços da beleza dela.
O juiz de fora de Cascais, solicitando lugar de mais graduado
banco, demorava em Lisboa, na freguesia da Ajuda, em 1784. Neste
ano é que nasceu Simão, o penúltimo de seus filhos. Conseguiu ele,
sempre balanceado da fortuna, transferência para Vila Real, sua
ambição suprema.
A distância de uma légua de Vila Real estava a nobreza da vila
esperando o seu conterrâneo. Cada família tinha a sua liteira com o
brasão da casa. A dos Correias de Mesquita era a mais antiquada
no feitio, e as librés dos criados as mais surradas e traçadas que
figuravam na comitiva.
D. Rita, avistando o préstito das liteiras, ajustou ao olho direito
a sua grande luneta de oiro, e disse:
– Ó Meneses, aquilo que é?
– São os nossos amigos e parentes que vêm esperar-nos.
– Em que século estamos nós nesta montanha? – tornou a
dama do paço.
– Em que século?! O século tanto é dezoito aqui como em Lisboa.
– Ah! sim? Cuidei que o tempo parara aqui no século doze…
O marido achou que devia rir-se do chiste, que o não lisonjeara
grandemente.
Fernão Botelho, pai do juiz de fora, saiu à frente do préstito
para dar a mão à nora, que apeava da liteira, e conduzi-la à de
casa. D. Rita, antes de ver a cara de seu sogro, contemplou-lhe a
olho armado as fivelas de aço, e a bolsa do rabicho. Dizia ela depois
que os fidalgos de Vila Real eram muito menos limpos que os carvoeiros de Lisboa. Antes de entrar na avoenga liteira de seu
marido, perguntou, com a mais refalsada seriedade, se não haveria
risco em ir dentro daquela antiguidade. Fernão Botelho asseverou a sua nora que a sua liteira não tinha ainda cem anos, e que os
machos não excediam a trinta.
O modo altivo como ela recebeu as cortesias da nobreza – velha
nobreza, que para ali viera em tempo de D. Dinis, fundador da vila
– fez que o mais novo do préstito, que ainda vivia há doze anos, me
dissesse a mim: «Sabíamos que era dama da Senhora D. Maria I;
porém da soberba com que nos tratou ficamos pensando que seria
ela a própria rainha.» Repicaram os sinos da terra, quando a comitiva assomou à Senhora de Almodena. D. Rita disse ao marido que
a recepção dos sinos era a mais estrondosa e barata.
Apearam à porta da velha casa de Fernão Botelho. A aia do
paço relanceou os olhos pela fachada do edifício, e disse de si para
si: «É uma bonita vivenda para quem foi criada em Mafra e Sintra,
na Bemposta e Queluz.»
Decorridos alguns dias, D. Rita disse ao marido que tinha medo
de ser devorada das ratazanas; que aquela casa era um covil de
feras; que os tectos estavam a desabar; que as paredes não resistiriam ao Inverno; que os preceitos de uniformidade conjugal não
obrigavam a morrer de frio uma esposa delicada e afeita às almofadas do palácio dos reis.
Domingos Botelho conformou-se com a estremecida consorte, e
começou a fábrica de um palacete. Escassamente lhe chegavam os
recursos para os alicerces: escreveu à rainha, e obteve generoso
subsídio com que ultimou a casa. As varandas das janelas foram a
última dádiva que a real viúva fez à sua dama. Quer-nos parecer
que a dádiva é um testemunho, até agora inédito, da demência da
Senhora D. Maria I.
Domingos Botelho mandara esculpir em Lisboa a pedra de
armas; D. Rita, porém, teimara que no escudo se esquarteassem
também as suas; mas era tarde, porque já a obra tinha vindo do
escultor, e o magistrado não podia com a segunda despesa, nem
queria desgostar seu pai, orgulhoso de seu brasão. Resultou daqui
ficar a casa sem armas e D. Rita vitoriosa (2).
O juiz de fora tinha ali parentela ilustre.

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