- Especifique. - Disse ele.- Primeiro corpo: data, hora, causa da morte, identidade da vítima, local, data e hora que foi encontrado... - Falo, abrindo minha caderneta e clicando a caneta.- Caneta bonita. - Ele fala, obviamente tentando desviar o assunto, enquanto a veia de seu pescoço incha. Respondo silenciosa, mostrando desinteresse, e cobrando uma resposta objetiva. Ele respira fundo e diz:- Onze de março de 2014, às 15:07, o assassino fez parecer um afogamento, mas o pulmão estava cheio de fumaça... - Houve uma pausa dramática, como se ele estivesse tentando me fazer desistir. - ...Seu nome era Gilda Martinez, tinha 46 anos, tinha 2 filhas, uma de 20, e outra de 9 anos. Seu corpo foi encontrado entre o rio e o canavial por um agricultor chamado Joaquim, já investigamos, e ele foi descartado da lista de suspeitos, porque a autópsia data a morte no dia oito do mesmo mês às 21:10, e nesse horário, ele estava internado com crise alérgica. A vítima estava desaparecida desde o dia anterior à sua morte, pesquisando sobre pessoas em busca de vingança, ou até mesmo agiotas, não encontramos ninguém que parecesse suspeito. Sem sinal de luta, ou algo considerado como uma reação, apenas marcas de corda em seus pulsos, deve ter sido amarrada. O sangue estava coagulado nas veias, e seu corpo fora encontrado sem o útero, mas nada de cortes ou pontos: fora retirado pela vagina. O órgão ainda não foi encontrado. Testemunhas dizem que ela andava enjoada, provavelmente estava na fase inicial de uma gravidez. Ninguém sabe quem é o pai, ela era viúva, a filha mais velha trabalhava no caixa de um mercado para ajudar nas despesas.- Estamos em 2016, porque esse crime foi ignorado. - Falo enquanto termino de anotar e olho para ele.- Não ignoramos, só não consideramos que este fosse o primeiro de uma grande onda de assassinatos à mulheres. Cidade pequena, é pequena demais até para um serial killer, se pensarmos que todos se conhecem.- Essa frase vai estar no artigo, tudo bem por você? - Eu falo.- Tenho uma dúvida...- Qual? - Fecho a caderneta.- Você vai ganhar o que com isso?- Meu T.C.C e uma coluna fixa.- E nós? As pessoas não virão para cá para visitar grutas ou museus, nossa fama será apenas de lar de assassinos.- Como sabe que ele mora aqui? - Pergunto.- Me responda primeiro: qual o benefício disso para a cidade?- Mais pessoas virão para cá para saberem da história, assim como mais policiais e investigadores virão para tentar encontrar o culpado. - Eu falo.- Não quero perder meu cargo.- Então por que não deu atenção necessária, e não persistiu em resolver isso desde o primeiro assassinato?- PORQUE ERA MEU PRIMEIRO ANO COMO DELEGADO, EU ERA INEXPERIENTE, PORRA, NADA PARECIDO TINHA ACONTECIDO, ATÉ EU ENTRAR PARA A POLÍCIA. - Ele diz, claramente alterado.Paro um pouco, tento ser compreensiva, e falo mais calma:- Então só está no cargo há 2 anos?- No segundo ano eu tinha 22, mas ainda era um moleque, foi quando meu pai morreu na rebelião do presídio, felizmente nenhum detento conseguiu fugir, e a pena de todos foi aumentada igualmente em 6 anos, não tínhamos tempo de investigar qual deles o matou, mas já que estavam todos lá dentro, e todos participaram da rebelião, isso acabou sendo feito. A justiça dessa cidade é muito falha. - Ele ficou pensativo, enquanto sua veia voltava a inchar, era típico dele. - Terminei o segundo e o terceiro ano, tentei o concurso da polícia, passei para a Polícia Rodoviária Federal, trabalhei lá por 1 ano, e só aí tentei concurso para delegado. Estou aqui há apenas 2 anos e já me arrependi...- Deve ser difícil para você, sinto muito.- Não ponha isso no artigo.- Não se preocupe. - Falo com convicção e empatia.O telefone toca, a ligação era da Rua das Bodas, número 183, uma mulher dizendo que achava que sua casa estava sendo invadida.- Depois falamos mais, preciso trabalhar. - Ele diz.- Também preciso. - Olho a hora. - Já são 11:00, preciso ligar para o meu patrão. Foi bom ter te encontrado, hora melhor impossível. - Estico os braços para lhe dar um abraço, mas ele apenas me estende a mão, então eu fico vermelha, retribuo, lhe dando um aperto de mão nervoso que ele deve ter percebido por ela estar pingando suor, e saio da delegacia.O sol estava muito diferente da hora que eu tinha entrado, tive que evitar a luz com a mão suspensa na frente do rosto, e fui para casa, pensando que talvez ajudar minha mãe a fazer o almoço pudesse nos reaproximar. Chegando em casa, vou direto para a cozinha:- Bom dia, mãe. - Passo e lhe beijo na cabeça, pegando uma maçã e sentando encima da mesa do seu lado, enquanto ela corta o aipo. Eu sempre adorei o barulhinho que ele faz quando cortado ou mastigado.- Ainda não se desfez dessa mania de sentar encima dos lugares? - Disse ela.- Tinha me desfeito, mas eu acho que essa cidade me faz relembrar muitas coisas, e retomar manias pode ser uma consequência. - Sorrio e olho para ela. Ela fala: - Eu lembro que você sempre gostou de me observar cortar aipo e repolho, você dizia que o barulhinho dava fome. - Ela sorri e me olha, seu olhos estavam molhados, e não era por que tinha um pote com cebola picada do seu lado. Ela estava diferente, esses 6 anos parecem ter judiado dela. Eu fugi para outra cidade, para não ter que encarar os julgamentos, mas e ela? Ela ficou, ela tomou o peso dos meus problemas, das minha pendências. Ela foi apedrejada no meu lugar, e eu não a culparia se ela me odiasse agora.Sem aviso prévio, ela larga a faca e me dá um abraço forte, deixando as lagrimas rolarem pesadas.- Estou tão feliz por você estar de volta, minha filha. - Ela fala, enquanto chora no meu abraço.Acho que ela era a única que foi sincera ao dizer isso.Ajudei ela com o resto do almoço, nós conversamos até o momento que meu primo chegou.- A benção, tia Jaci. - Disse ele, deixando o jaleco sob uma cadeira.- Deus lhe abençoe. - Falou minha mãe.Eu me calei e coloquei um copo com água. Ele me olhou de cima para baixo antes de me cumprimentar, e não foi por que eu estava diferente, eu só cortei a franja, pintei o cabelo de preto, estava com olheiras e meu óculos estava remendado. Ele acha que só por que estudou medicina é melhor que todo mundo.- Olá, Sirena.- Oi, Pablo.- Não sabia que viria. - Disse ele.- Ela me disse estava precisando de sua ajuda para tratar do pulmão dela. - Disse minha mãe.- Isso é verdade, Sirena?- Não. - Eu disse.- Pare de ser orgulhosa. - Disse minha mãe. - Ela precisa sim.Respiro o fundo e viro os olhos, deixando o quadril repousar sobre uma das pernas.- Andou fumando? Lembro que você fazia isso escondida, no ensino médio. - Disse Pablo, num tom sarcástico.Minha mãe me olhou com reprovação, como se já soubesse, mas estivesse apenas esperando alguém lhe falar, e foi tirar a pressão da panela.- Vai acabar ficando como a Gilda, ela também fumava assim, e olhe como terminou. - Ele falou de forma insensível e deu uma pequena pausa. - Depois do almoço estarei no consultório de novo, passe por lá. - Ele deu as costas, pegou o jaleco e foi guardar no andar de cima.- Eu não gosto dele. - Eu disse.- Ele puxou ao pai, tenha um pouco mais de paciência. - Disse minha mãe, limpando a mão no avental e tirando ele.Fui para a varanda e liguei para o Gustavo, mas deu na caixa postal, então tentei mais uma vez, e quem atendeu foi a Taisa.- Da próxima vez, ligue direto para mim. - Disse ela.- Não tenho seu número.- Anote aí... Ela deu o número do telefone dela e eu anotei. Lhe disse sobre o que já havia descoberto.- (...) E porque não foi discutido o assunto desde o primeiro assassinato? - Disse Taisa.- É assunto pessoal do delegado.- Um assunto que interferiu na segurança de toda a cidade.- O delegado é meu amigo, me pediu discrição.- Eu juro omitir o máximo possível, se você puder ao menos saciar minha curiosidade. Eu acabei por contar tudo o que ocorreu com o Beto, até mesmo o que motivou ele virar delegado.- Isto é interessante, vou tentar medir as palavras e te mandarei uma prévia para você me dizer se está discreto o suficiente, ok? - Disse ela.- Ok... Mas me lembro que você pediu um artigo sob o olhar poético. - Eu disse.- O que é mais poético do que encarar os fantasmas do passado? Você era a pessoa ideal para isso.- Não acha errado romantizar essas tragédias? - Eu digo.- E o que para você é mais romântico do que um assassino em série que colecionava úteros? Talvez o desejo de ser mulher, ou a falta de um amor materno... O mistério é a natureza da beleza. Fico calada.- Tente me trazer informações sobre a segunda vítima até amanhã às 16:00, estarei programando a publicação desse primeiro logo quando você aprovar a prévia. Te enviarei por volta das 22:30. Tenha cuidado.Ela desligou e eu fiquei olhando para o celular. Será que isso estava certo? Parecia que eu estava apenas usando aquelas pessoas, eu não me sentia bem. Peguei um cigarro da carteira e acendi, sentando na calçada e me acomodando na sombra das telhas de P.V.C da varanda, enquanto o cheiro da carne cozida vinha da direção da cozinha.A hora de fumar havia virado a minha hora de pensar desde que eu me mudei e não precisei mais fumar escondida, mas eu pensava o dia inteiro, coisas aleatórias e soltas, assim como qualquer um, mesmo assim a hora de pensar era importante, por que eu unia esses pensamentos soltos e os analisava, talvez eu tivesse deixado passar algo. Eu tentava descartar os pensamentos inúteis, pensamentos que temos como quando a gente passa na frente de uma padaria e vê um queijo lindo e enorme, e começar a fazer uma receita na cabeça, eu não precisava disso agora. As coisas passavam na minha cabeça como a brasa queimando a seda: devagar, separando a cinza da fumaça.- Eureka! - Que ridículo, me senti o Albert Einstein, e eu nem sabia se tinha sido mesmo ele quem tinha inventado esse termo. As vezes eu pareço muito coloquial pensando. Apaguei meu cigarro, peguei o guardanapo no meu bolso e disquei o número no celular.A minha surpresa retratada, logo foi dita ao Beto numa chamada:- Alô?- Beto? É a Sirena, e acho que tenho um suspeito.- Onde você está?- Na casa da minha mãe, o almoço está no fogo, pode almoçar aqui, teremos tempo para falar sobre isso.- Estou nos arredores, estava escoltando Dona Ana, ela estava delirando de novo, disse que estava sendo seguida.- Aquela velha ainda é viva? - Falo rindo.- Incrível, não é? Ela sempre foi velha, desde que éramos criança, e pelo tanto que fuma, é quase um milagre. - Ele ri.- Quantos anos ela tem mesmo? - Não menos de 300. - Nós rimos. - Vou desligar e já chego. - Ok. - Ele desliga, eu saco minha caderneta, abro na última folha e faço um plano de investigação. Apanho a bituca de cigarro do chão, entro, jogo a bituca no lixo e vou para o meu quarto.Ao chegar no quarto, retiro a folha do caderno e colo no lado de dentro da porta, escrevendo noutra folha o nome de Pablo, e colando este também. Olho pela janela e a viatura já estava na frente da casa, então eu saio do quarto.Meu quarto não tinha tranca desde o ocorrido em 2009. Desço a caminho da cozinha e o Beto estava conversando com a minha avó, eu fiquei rindo no pé da escada, ouvindo as histórias da vida dela que ela contava com orgulho e graça, e eu adorava imaginar ela jovem como nas fotos dos álbuns mofados nas gavetas, fazendo tudo aquilo.Beto me ouve rir e me olha.- É a Sirena? Sirena, há quanto tempo está aí? - Fala minha avó.- Quase 10 minutos. - Eu digo.- Estava nos espiando? - Diz ela.- Sim. - Falo rindo.- Oh, droga. - Ela ri também, aquele tipo de risada de gente idosa que quase para às vezes, vem acompanhada de olhos fechados, e termina com uma tossida seca.- Vó, eu preciso roubar o Beto da senhora um pouco.- Tudo bem, vá lá, eu quero assistir o jornal mesmo. - Diz ela.Beto me acompanha até a cozinha e eu me encosto na pia.- Então, quem é o seu suspeito?- Estou suspeitando do meu primo, o Pablo.- Porque?- Lembra que você me disse que não haviam cortes, mas o corpo estava sem o útero, e que certamente havia sido retirado pela vagina?- Lembro.- Acho que não sou só eu que acho isso parecido com um processo de aborto clínico, apenas especialistas na área médica sabem fazer isso, e ele é o único que não trabalha nisso por ter passado em concurso, e sim por ter se aprofundado.- Mas não foi nisso que se baseou toda sua suspeita, não é? Você teria dito algo logo quando eu falei do primeiro corpo. - Fala Beto.- Há mais ou menos 1 hora minha mãe disse a ele que eu tinha voltado para cuidar do meu problema cardíaco... - Ainda sofrendo com isso? - Ele interrompe. Aceno que sim com a cabeça e continuo:- Ele perguntou se isso era por que eu ainda andava fumando, porque pode entupir as veias e mudar a circulação para o pulmão, já que diminui o fôlego...- E...? - Ele diz.- Ele disse que não era à toa que eu nunca melhorei apesar do tratamento quando eu era criança, e que se eu continuasse assim, terminaria como a Gilda. Ele falou isso de forma totalmente insensível, e um quase sorriso. Beto fica pensativo alguns instantes, até a panela de pressão apitar e nos assustar. Rimos um pouco.- Eu vou ao banheiro. - Subo, deixando Beto na cozinha.Ao sair do banheiro, vou ao meu quarto pegar uma escova de dentes, não queria que o almoço tivesse com gosto de fumaça.- Oi, priminha. - Ouço a voz de Pablo no meu quarto, e o vejo pelo espelho, me assustando.- O que você quer?- Tinha vindo lhe dizer que não estarei no consultório hoje pela tarde por que faltam alguns materiais descartáveis e vou buscar no depósito. - Ele vai na direção da porta, olha meu plano, abre a porta e diz:- Sua caligrafia nunca foi boa. - Ele pega um papel na escrivaninha, autografa e cola encima do papel com o nome dele e tira uma selfie com a porta.- Desça para almoçar, estaremos esperando você. - Ele diz e sai.Me sento na cama assustada, deito com as pernas fora da cama, olho o hora, descanso um pouco o celular no meu busto e vou escovar meus dentes.Saio do banheiro secando os olhos na manga da blusa, na mesma hora em que Beto bate na porta e a deixa entreaberta:- Sirena? Só falta você lá embaixo. - Diz ele.- Já vou descer...- Você está bem? Parece tensa.- Eu não queria contar a ninguém, mas você é meu amigo e é o delegado. - Falo, sentando na borda da cama e chamando ele.- V-você... O que quer dizer?- Ai meu Deus, como você é idiota, eu só quero que você entre e veja a porta do meu quarto. - Ele entra, fecha a porta e vê o autógrafo do Pablo.- Na adolescência eu até brincaria dizendo que não sabia que você era tiete do seu próprio primo, mas percebo a gravidade agora. - Beto levanta o autógrafo e vê meu plano. - Ele viu isso?- Viu...- E te ameaçou? - Perguntou preocupado, indo até mim e segurando meus ombros.- Não, mas foi cruel o suficiente para tirar selfie com a porta.- A insensibilidade dele é suspeit...Interrompo, dizendo: - Não é ele.- Porque acha isso?- Ele age de maneira cruel sim, mas ele deixa na cara que não tem nada a esconder, e pelo que você me disse, essas mortes já vem acontecendo há muito tempo, e o cara que estamos procurando não seria tão idiota, ou já teria sido capturado. Beto fica claramente surpreso com minha perspectiva lógica, mas logo dá um sorriso de alívio e diz: - Pena que deboche não é crime, eu podia quebrar ele na porrada.Saímos do quarto rindo e vamos para a mesa no jardim.
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A dash, a dot.
Mystery / ThrillerUm T.C.C, uma oportunidade de emprego fixo, um serial killer... Acompanhe a protagonista Sirena nesse mistério que a fará encarar seu passado em sua cidade natal conservadora. Sua arma contra isso? Um papel e uma caneta: um traço, um ponto. (Parte d...