Neco soube que já era dia porque a luz que entrava pela única janela do seu compartimento atingiu seus olhos. Ele sentou na beira da cama e espreguiçou-se. Seus olhos reviraram dentro das órbitas, causando repentino enjoo.
Ele usou as três mãos para pressionar a cabeça, tentando fazer tudo parar de girar. Não conseguiu e correu para a pequena pia que ficava em um dos cantos do quarto. Vomitou toda a sua janta da noite anterior: latas, sacolas, e lenços de papel, tudo misturado em uma gosma branca e fedorenta. Neco pegou seus dentes de volta no fundo da pia, em meio ao vômito, e os recolocou um a um no lugar.
Agora ele sentia fome. Foi até a geladeira e abriu a porta com a mão que tinha só quatro dedos, enquanto que com as outras ele remexia no interior gelado do eletrodoméstico. Duas fendas horizontais logo abaixo dos olhos abriram para sentir o cheiro da comida; Neco escolheu o prato que parecia ter mais tempo ali dentro, com uma pelugem ocre crescendo no topo. Ele fechou a geladeira e foi até a mesa, sentou-se e começou a comer sem talheres, só precisava dos dedos e das longas unhas. Quando ficou saciado ele jogou o prato para dentro da bocarra e arrotou.
Era hora de trabalhar. Uma escada frágil levava até a única janela que deixava a luz do sol entrar. Ele subiu devagar, sua barriga imensa dando mais trabalho que o habitual, raspando nos degraus da escada, sendo ferida por farpas e causando a Neco uma feliz dor masoquista. No topo da escada, havia um dispositivo junto à janelinha. Era um botão vermelho redondo, rodeado por fios que sumiam por um orifício que levava para o lado de fora. Aquela era a única forma de sair daquele quarto. Não havia portas, não haviam outros buracos, não haviam madeiras soltas, nem juntas, a única forma de sentir a brisa que soprava do lado de fora era através da passagem dos fios. Aquela era a parte do seu deprimente dia que Neco mais gostava: sentir o ar na sua bochecha caroçuda.
Estava quase na hora, era só questão de aguardar.
Ele não se lembra bem como sabe o que tem o que fazer. Mas sabe que é importante, sabe que se deixar de apertar o botão tudo acaba, sua vida, seus dias, seu mundo. Algumas vezes a vontade de Neco é de não apertar o botão e ver o que acontece, esperar o fim de tudo, mas ele sempre aperta o maldito botão vermelho... como agora.
Primeiro os pelos de suas costas ficam eriçados, então começa o zumbido dentro da sua cabeça. Ele tem um dejavu de um homem alto, uma sombra, usando cartola, e então um estalo em sua nuca. Pela janela, Neco vê a luz clara dar lugar à uma noite escarlate, vê as nuvens chorando lágrimas e o sol explodir. Só o botão faz tudo parar. Ele encara a janela enquanto tudo volta ao normal.
Neco desce a escada e volta para a cama. Precisa descansar para salvar o mundo mais um dia.
Sobral - CE, 16 de fevereiro de 2019.
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Este é um novo projeto. São contos sem pé nem cabeça, imagine tudo em stop motion e o mais bizarro possível.
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Contos Sinistros
ParanormalHistórias curtas sinistras, às vezes perturbadoras, que aparentam não ter sentido, mas preste bastante atenção nelas. Histórias que vão te perseguir.