Minha alma não tem tampinha

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Exausta.

Completamente exausta.

Se Camila a visse, faria uma daquelas suas associações peculiares.

Diria que ela estava se parecendo com um urso polar na fase do documentário em que não sabemos se vai finalmente conseguir comida, na vigésima nona tentativa.

Aquela parte em que tudo está descongelando, morrendo ou fugindo e ficamos escandalizados sobre o aquecimento global.

Quando desce uma profunda vergonha existencial sobre ser humano...

Ela havia visto um urso polar uma vez.

Num zoológico em Viena.

Queria ter visto Camila naquela época, mas vira um urso polar.

Naqueles aquários em que o vidro cobre a água e metade da superfície, bem imersivos...

Igualmente assustador, quando queria ser.

Tinha uma coluna em um dos pontos da água, bloqueando a observação.

Fora dali mesmo que ele decidira surgir, do nada, lhe encarando pelo vidro como uma besta poderosa.

Era um segundo que não ia se esquecer, aquele.

Por que as coisas eram assim?

Subnutrido no seu habitat ou magnífico mas preso, no centro da Áustria.

As duas em Viena, sem se encontrar.

As duas em Londres, separadas como nunca.

Era tão difícil assim o mundo prestar?

Exausta.

Passara dois dias se encontrando com organizações de ativistas em Portugal, dando palestras para advogados, acadêmicos, servidores públicos e estudantes, dialogando com refugiados e criando laços com as lideranças locais combatentes de violações de Direitos Humanos.

Por falar português, se oferecera para traduzir algumas conversas entre refugiados cuja experiência daquele tipo de dor específica fornecia um tipo de conforto que não iria escapar na sua vigília.

Fora útil, mas era emocionalmente desgastante ouvir aqueles relatos de sofrimento absurdo e perspectivas desafiadoras.

Tanta tristeza.

Para todos os lados.

Se amor era fogo que arde sem se ver, a tristeza devia ser gelo que se alastrava sem se anunciar.

Okay Lauren, respira...

Parar de focar na sensação das suas entranhas sendo preenchidas de angústia.

Às vezes achava que se abrisse a boca tinha esperança dela sair.

Não queria nem lembrar dos relatos.

Meio tonta, estava tentando encontrar o quarto em que Camila se hospedara.

A televisão portuguesa anunciava outro homicídio doloso coletivo no Brasil.

Outra cidade traída pelas pessoas que diziam lhe fazer prosperar.

O dever de cuidado?

Soterrado.

Arrastou crianças e idosos e mulheres e homens e animais e casas construídas com a vida.

Enlameado.

Tão previsível.

Tão evitável.

Mas era assim.

Modulação PolicromáticaOnde histórias criam vida. Descubra agora