– Hector, venha aqui imediatamente – Chamava a senhorita Spellors pelo seu fiel assistente e companheiro de longa data.
A porta de madeira da cabana abrira revelando uma figura de grande porte e estatura, a qual se aproximava da jovem mulher que estava próxima a uma grande poça de líquido róseo espalhada pelo chão.
– Chamou Monstro, senhora? – Perguntava o homem de voz doce, porém rouca e arrastada.
Monstro estivera com Spellors há mais tempo do que podia se lembrar. Antes um rapaz esbelto e de belo sorriso, agora um homem de grotescas feições e diversos ferimentos que sofrera durante a vida.
– Poderia me explicar o que meu frasco de luaforte faz quebrado no chão? – A moça cruzava os braços e batia um dos pés em sinal de impaciência. – Que há de ser esta bagunça?
O homem coçava a parte de sua cabeça onde se encontrava uma enorme cicatriz de queimadura, privando-o de quaisquer fios de cabelo que pudessem crescer ali, mas deixando espaço para que algumas mechas emaranhadas surgissem do lado oposto.
– Monstro não sabe, senhora... – Juntava as mãos à frente de sua cintura e olhava para baixo intimidado, o que fazia com que parecesse muito mais inofensivo do que realmente era.
Mas a moça muito bem sabia que não haveria de ter entrado outra pessoa ali. Havia só os dois naquela parte da floresta, isolados do pequeno vilarejo, que se encontrava a alguns quilômetros de lá.
– Ora, Hector, houve o tempo em que tu foras mais esperto... – Dizia a mulher, lançando um breve suspiro enquanto balançava a cabeça em reprovação.
Hector sempre tivera certo nível de deficiência mental, porém estava pior nos últimos tempos. Demorava mais para formar frases e insistia em se referir a si mesmo como "Monstro", mesmo a moça não gostando nada daquilo.
– Bom, teremos que buscar por mais – Decidiu, por fim. – Esta não servirá, e meu estoque está se esgotando.
Spellors seguiu então em direção a um velho baú de madeira, onde guardava suas roupas. Retirou de lá um enorme manto de lã preta e logo o pôs, cobrindo grande parte de seus cabelos ondulados e também de sua túnica de linho bege, a qual estava vestindo amarrada à sua cintura por uma corda grossa de barbante. Precisava estar aquecida e muito bem tapada, pois uma frente fria estava chegando, e não poderia arriscar ficar doente.
Monstro, por sua vez, decidiu seguir viagem com as roupas do corpo; uma camisa creme de manga comprida e uma calça de tecido acinzentado, ambas muito mal cuidadas, apresentando pequenos rasgos e manchas de terra. Trocava de roupa uma vez por dia, porém o árduo trabalho braçal, que realizada constantemente, deixava-o tão sujo quanto se tivesse passado vários dias sem sequer tomar banho.
– Acho que temos tudo, por agora – Disse a moça enquanto guardava seu punhal de cabo dourado juntamente à sua cintura e colocava alguns frascos vazios no bolso de seu manto. – Ah, sim. Estava me esquecendo.
A mulher adentrou o segundo e último cômodo da cabana, onde se encontravam duas camas de uma madeira antiga e já apodrecida, uma de casal e a outra de solteiro. Retirou debaixo da cama de solteiro um grande machado de lenhador e prontamente retornou para onde Monstro se encontrava.
– Pegue, Hector – Ofereceu o machado para o homem, que imediatamente o agarrou com uma das mãos, puxando-o pelo ar até que pousasse em um de seus ombros, que serviria de apoio. – Só... Tome cuidado por onde você balança este treco. – Dizia a moça, cujo pescoço passara centímetros de ser arrancado fora do corpo.
– Ha, ha... Desculpa Monstro, senhora – Soltava uma risada sem jeito, porém achava graça da situação. Spellors, no entanto, não dava o mínimo ar de graça.
Os dois então seguiram para fora da cabana, que dava espaço a uma enorme floresta de pinheiros. A maioria de sua vegetação era rasteira, porém de grande variedade naquela região, possibilitando a Spellors o acesso a diferentes tipos de ervas medicinais, como a luaforte que, quando transformada em chá, servia como um ótimo calmante.
Após alguns minutos de caminhada, os céus ficavam mais escuros, anunciando a chegada da noite, assim como também anunciava a aproximação de uma forte tempestade.
– Relatório do dia – Dizia a moça enquanto virava os olhos à procura da planta correta, porém sem sucesso.
– Monstro viu quatro caçadores mais cedo. Não! Monstro acha que foram cinco! – Coçava o queixo com a mão desocupada do machado, tentando se lembrar. – Monstro viu cinco...?
– Vamos... – A moça revirava os olhos, impaciente – Não tenho tempo para essas bobagens. Decida-se.
O homem parou por alguns instantes e tentou forçar-se a se lembrar. Spellors parou junto ao rapaz, esperando pela resposta deste com certa dúvida de que fosse se lembrar de algo.
– Monstro... Monstro lembra! – Subitamente abraçava a moça com um dos braços, em êxtase pela conquista. – Quatro caçadores e uma criança. Sim, Monstro tem certeza!
- Uma criança? – A voz da moça saía abafada, devido seu rosto estar sendo imprensado contra o peito do enorme homem. – O que uma criança faz com caçadores? Aliás... Você está me sufocando.
– Ah, Monstro sente muito! – O homem rapidamente solta a moça, que dá umas batidas na roupa amarrotada, tentando se ajeitar. – Monstro não viu a criança com caçadores. Monstro viu a criança sozinha. A criança viu Monstro, também.
– O quê? – Spellors colocava a mão sobre a boca, incrédula. – Enlouqueceu...?!
– A criança? – Monstro perguntava inocentemente. – Não. Criança amiga de monstro. Criança prometeu não contar.
– E você acreditou? Eu nem sei por onde começar... – Subitamente um grito agudo e assustado preenche o ambiente. – Que foi isto agora?
– Amigo de Monstro...? – Monstro rapidamente se afasta da moça e corre freneticamente para onde o barulho está vindo.
– Espere por mim, seu grande idiota! – Spellors grita para o rapaz, mas este já estava longe e simplesmente ignora a ordem. – E lá vamos nós...
A moça começa a correr desajeitadamente atrás do homem, constantemente tropeçando em galhos secos e amaldiçoando cada um destes. Quando finalmente alcançou o rapaz que já havia parado de correr, estava extremamente ofegante, pois havia anos que não fazia tamanho esforço físico.
– Maldição... Não se abandona uma moça no meio da floresta! Está me ouvindo? – O homem claramente não estava, pois olhava fixamente em uma direção. – Que está vendo de tão interessante? – A moça virou sua atenção para o mesmo lugar. – Ora, ora...
A cena à frente era uma verdadeira chacina. Havia pelo menos três corpos de homens adultos espalhados pelo local, totalmente dilacerados e deformados. O cheiro pútrido de sangue começava a subir pelo ar, e moscas pousavam na carne exposta dos corpos já sem vida. Aparentemente, uma matilha de lobos houvera passado pelo local, pois um deles ainda estava presente.
À frente do enorme lobo acinzentado, um garoto vivo e ofegante, que estava caído no chão, usava de todas as suas forças para se afastar do enorme animal, que vinha com as presas expostas, fazendo uma feição demoníaca e macabra.
O garoto não aparentava ter mais que dez anos e se encontrava totalmente apavorado, com uma das pernas ensanguentada e provavelmente quebrada. Mas este não chorava. Apesar de trêmulo e totalmente assustado, tentava fazer uma expressão mais assustadora que a do lobo, com o intuito de assustá-lo para longe.
Spellors não poderia estar mais contente:
– Bem, se aquele for o garoto que te viu mais cedo, problema resolvido. – E então deu as costas para o menino. – Venha, Hector. Vamos embora...
Porém não houve resposta. Quando deu por si, o homem de enorme coragem já estava avançando contra o lobo, com seu machado devidamente preparado para o combate.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Bruxa de Espinhos
FantasyExilada da sociedade, senhorita Spellors, juntamente de seu companheiro Monstro, prossegue vivendo cada um de seus dias abrigada em uma cabana no meio de uma enorme floresta, onde feras e caçadores são constantemente avistados. Correndo risco con...