Capítulo II - A maldição

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― O que acabou de acontecer, Iago?

Estávamos numa saleta anexa, Alika, Iago, Savannah e Cornélia me encaravam confusos. Algo estranho estava acontecendo. Não me surpreendia.

― Ele morreu.

― Isso é óbvio. Quero saber a razão de ter morrido agarrado à minha mão.

Encarei minha palma direita, estava marcada. Queimada, melhor dizendo. Um círculo interrompido percorria minha pele, uma leve ardência vibrava na mancha, como se fosse marcada a ferro. Ela não estava aí até que o homem desfalecesse segurando-me. Mais uma queimadura para minha lista.

― Deixe-me ver sua mão. ― pediu Alika, aflita. Ela percorreu o desenho com assombro. ― Não é possível...

― O quê? Fala, vó.

― A Maldição da Morte.

― Não pode ser, Alika. ― interveio Cornélia.

― O que é a Maldição da Morte, afinal? ― parece que eu não era a única sem entender o teor da conversa, Savannah estava tão curiosa quanto eu.

― É um feitiço maligno para retirar a vida de outro bruxo.

― Que reconfortante... ― soltei. ― Mas parece que não funcionou, estou viva.

― Não é tão simples. ― disse Iago. ― Quando um bruxo a recebe, ele fica infectado, mas para acionar e concretizar o feitiço é preciso usar magia. Se usada, a maldição é ativada.

― Isso é cruel... é como retirar do bruxo sua natureza. ― falei.

― Essa foi uma das razões para o feitiço ser terminantemente proibido de ser utilizado. ― continuou Alika. ― Para que seja feito é preciso que o bruxo que o vá realizar dê sua vida em troca.

Duas balanças, uma medida. Uma morte, duas vidas. ― murmurei.

― Sim... o homem que caiu morto e deixou essa marca em você desejava tirar sua vida. O círculo interrompido representa a vida sendo interrompida, é o símbolo cru da Morte.

― Foi uma grande e astuta armação. ― interveio Iago. ― Quem está por trás disso não teve escrúpulos de mandar alguém se sacrificar para alcançar seu objetivo, e sabia muito bem que na cerimônia de hoje você usaria magia para provar que é uma Elentália.

― Havia me esquecido disso... a demonstração elementar ainda ocorreria esta noite.

― Sim, Rose. Assim que você ativasse os elementos sobre as pilastras no final da recepção de hoje, estaria morta.

― Ela não pode participar, Iago. ― anunciou Alika, quase em gritos.

― Eu sei. Eu sei, mãe. Preciso pensar em algo para contornar a situação. Temo que o cancelamento da demonstração não vai agradar à maioria das pessoas ali. Faz alguns anos que derramam críticas sobre nossa família, nos acusando de incapazes... como se fosse nossa culpa que uma Elentália não nascesse há séculos!!

Iago estava nervoso, podia sentir antes mesmo de suas emoções se exaltarem. Eu entendia. Estávamos dando um grande passo político de reorganização das Resistências, precisávamos da confiança e apoio de todos, ou nada sairia do lugar. Ou pior, sabendo agora o quanto os Acazes construíam planos para nossa aniquilação completa, estagnar onde nos encontrávamos era o mesmo que suicídio. E agora mais essa. Esse plano fora arquitetado pelo Corvo Branco, sabia disso. Sentia isso. Apesar da crueldade, não poderia deixar de parabenizá-lo pela inteligência. Eu era uma ameaça. E das grandes. Balancei o equilíbrio das coisas, a balança pendia para o lado deles, agora podia muito bem pender para o nosso.

― Eu farei.

― O que disse? ― perguntou Alika, me encarava como se visse uma desvairada. Se ela soubesse que eu não estava longe disso, de fato...

― Iago tocou num ponto importante, vó. Se eu não fizer o teste, tudo o que conquistamos até agora vai por água abaixo. Não posso permitir isso.

― Rose... ― Savannah gemeu, triste.

― Eu te proíbo, Rose.

― Me desculpe, vó. Mas essa decisão não está em suas mãos. ― encarei Iago, esperando que ele compreendesse. O vi assentir levemente, um olhar triste encarando firmemente o meu. ― Então, vamos lá. Me desejem sorte.

O corpo não estava mais lá

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O corpo não estava mais lá. Alguém o tirara. Onde poderá ter sido colocado? O que fariam com ele? Olhei ao redor, quatro pilastras curtas foram colocadas no meio do salão com uma bandeja sobre elas, em cada uma havia um elemento: uma porção de terra, água, fogo e a última vazia, representando o ar. Todos os presentes se espalharam ao seu redor, para observar atentamente o que ocorreria a seguir, estavam à nossa espera.

Me dirigi ao centro, me coloquei na frente da primeira, encarei a terra ali disposta, sua cor semelhante à minha pele. Com a mão esquerda a fiz levantar, saltando a bandeja de forma vertical, crescendo para o teto como num jato de um gêiser, deixei que caísse e desabrochei nela uma única rosa vermelha. Encarei discretamente minha palma queimada, estava normal. Podia ouvir dali o suspiro da minha família, pareciam gritar sem que nenhum som fosse emitido.

A próxima era a água. Ela se estendia parada na bandeja funda e escura. Novamente, com a mão esquerda, fiz o elemento dançar no ar, formando a figura de uma borboleta que pousou na rosa, se desmanchando e molhando a terra que a segurava. Mais um. Nada de estranho acontecera.

Ar. Deixando minha mão direita junto ao meu corpo, protegendo a Marca da Morte de olhares curiosos, levantei a esquerda e um pequeno e nada perigoso redemoinho começou a se formar, deixei que ele passeasse próximo aos rostos dos presentes, balançando seus cabelos e arrancando alguns sorrisos. Deixei que a pequena forma se aproximasse da última pilastra e soprasse a chama ali presente, apagando-a. Suspirei. Estava quase lá. Faltava apenas um. E esse, não precisava que estivesse presente para convocá-lo.

O fogo. Lindo e perigoso amigo. Um companheiro. Uma parte de mim. Minha mão direita formigava para ser utilizada, o fogo clamava por isso. E não poderia eu negá-lo. Chamas surgiram de ambas as mãos, arrancando suspiros surpresos dos presentes, não haviam muitos controladores de fogo. Com um movimento leve, lancei-as sobre as quatro bandejas, deixando-as que queimassem ali. De longe, vi Alika apertar a mão de Iago e soltar o ar que prendera novamente em seus pulmões. Encarei a rosa vermelha que queimava e ignorei a queimação da marca na minha mão. Não precisava olhar para saber que ela estava vermelha como o fogo.

Os aplausos do público tomaram de volta minha atenção. Não pude deixar de me sentir numa exibição. Um espécime exótico sendo avaliado por olhos curiosos e atentos. Felizmente, pareciam satisfeitos. E eu não estava morta.

Teria aquele bruxo perdido sua vida para nada?

Queimada - Livro II da Trilogia FOGOOnde histórias criam vida. Descubra agora