Capítulo 1 - A última prece

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As raízes mordem os joelhos de Garin. Como cobras, cobras de madeira, pensa consigo. A dor só dura alguns minutos, depois as pernas adormecem de tal maneira que terá dificuldades para se erguer, sabe disso, sabe como ninguém.

— Tem que orar direito — a mãe sussurra em seu ouvido.

Mas o que seria orar direito?

A dor, o frio e o sono embaralham sua língua, espantando todas as palavras que deveriam pertencer ao Rei da Alvorada, o Principiador. Todas as palavras que veem a sua mente são os verbetes das sombras que enfeitam seus sonhos ruins. "Não há luz para ti, assim como não há luz para nós." Elas diziam, dizem e continuarão a dizer toda vez que fechar os olhos por tempo suficiente, sabe disso, sabe como ninguém.

Garin tenta articular algumas palavras por insistência da mãe, que diz que logo o sol despertará, e que eles precisam ser rápidos.

— Sua Alteza...

É tudo o que consegue dizer.

A mãe parece contrariada. Tem pressa. Acompanha-o na prece, reza por ele, mas não faz questão de se ajoelhar sobre as raízes da árvore vermelha.

— Rei da Alvorada, Principiador, Senhor de Todos, escute nossa prece — ela diz, e diz muito mais ao qual Garin não dá a devida atenção. Apenas repete o que ela diz de forma mecânica, desinteressada. Não são palavras dele. — Supra os desejos de nossos corações.

Desejo, o que ele desejava, afinal?

Imagina que ele e ela têm intenções distintas. Desejos próprios. E de alguma maneira ela parece saber o que ele deseja.

Uma luz despontava no horizonte, a primeira luz da manhã.

O Rei da Alvorada despertava.

Meia dúzia de figuras de vidro disparam uma infinidade de matizes sobre ele, a outra metade ainda dorme nas paredes, ou apenas o vigiam, não se sabe. Garin sente um abraço caloroso e amável e se imagina amado. Ao menos é assim que gosta de pensar.

Sente menos frio nessa hora da manhã.

— Um pecador se ajoelhou na noite, um santo se ergue na luz da manhã. Que assim seja — a mãe diz com veemência e ele repete, obediente.

A mãe, inesperadamente, retira uma faca de um bolso e apunhala a árvore, como se golpeasse um porco entre os olhos. Garin age como se aquele gesto não fugisse do comum. Pergunta-se o que mais ela esconde sob aquele hábito alvejado.

Um líquido vermelho e espesso escorre da árvore para a lâmina, como sangue escorrendo de uma ferida. Com a faca besuntada, ela ergue sua franja e unge sua testa com um gesto solene.

O sangue da árvore é quente e pegajoso.

Ouvi-se um burburinho provindo dos cômodos interiores, ao mesmo tempo que os passarinhos despertam e abandonam seus ninhos, cantando e rodopiando sobre suas cabeças.

— Erga-se, meu filho.

Garin a ignora, não por querer, é porque as pernas ainda não retomaram o fôlego.

Naquela noite quando a mãe viera acordá-lo — Com uma candeia, ela nunca traz luz, mas dessa vez trouxe uma candeia — dissera a ele que enfim chegara o dia. O dia de quê? Pensara.Então deu-se conta. Seria o dia que, finalmente, seria abençoado.

— Levante-se — ela repete.

Garin se esforça para se colocar de pé, mas as pernas não passam de uma lembrança amigável. Então, não de repente, elas o traem de vez. O coração vai à boca e o corpo desaba em direção à árvore santa. O golpe de face no tronco seria eminente, mas suas mãos são mais ágeis e amortecem a queda, lhe privando de um desengonçado percalço. Sua bochecha encosta no tronco da árvore santa e assim permanece por um momento.

Garin - O Filho das CinzasWhere stories live. Discover now