O último passageiro

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Das tantas viagens que fizera na vida, aquela era a última. O som das rodas se atritando ao asfalto, o balançar das molas, as idas e vindas do limpador de para-brisas, tudo lhe soava a despedida. Formou família, formou filhos. Sob o comando daquele veículo de transporte público, formou vida, formou-se homem.


Um e outro se despediram dele. Era conhecido, era respeitado, era querido, era esperado. Alguns deixavam o veículo lacrimejando olhos. Outros davam de ombros. Aos poucos ele ia percebendo o final da linha, o final da carreira, o final do dever.

Era tarde da noite, pegou último horário no último dia: presente do velho patrão. Esteve a seu dispor por tantos anos e agora isso. Sem cerimônias, sem delongas, sem folga, sem nada. Apenas trabalho.

Notou um último passageiro. Sentava distante, indiferente à despedida. Era jovem, era irreconhecível pela distância. Repetidas vezes olhou pelo retrovisor buscando interação, mas ele não lhe retribuía as olhadelas.

Os pontos finais daquele trajeto eram de perigo e seria de grande valia para ele ter alguém com quem dividir aquele trecho. Alguém para contribuir em uma estratégia de fuga, de ataque, de defesa, de socorro. Em vão tentou parceria.

A iluminação era precária e o que ele tinha eram os faróis e espaçados postes públicos. Ele apagou as lâmpadas internas, afim de que não ficasse evidente o vazio veículo que conduzia. Um sujeito deu sinal, mas ele não parou. Por medo, por desatenção, por inquietude, por pressa.

Um segundo sujeito apareceu, desta vez parou. Olharam-se. "A noite tá bruta, meu caro!" O motorista concordou. "Tá andando sozinho à essa hora?" Ele balançou a cabeça olhando para o retrovisor, mirando o último passageiro. O homem se virou, mas não viu ninguém. "Tá doido?"

O motorista acendeu todas as lâmpadas do veículo para que o sujeito pudesse ver a companhia que tinha lá na carreira do fundo, mas se chocou ao ver que não havia ninguém. "Ele estava ali" Julgou-se louco, julgou-se distraído, julgou-se cansado.

"Pois bem! A noite tá bruta e eu sou o motivo. Dá-me o que tem." O sujeito se levantou apressado, apontando-lhe um velho 38. O motorista parou imediatamente o veículo. Na escuridão daquela avenida deserta e fria. Ele tinha todo o ganho do dia nos bolsos. Ele tinha toda uma vida nas costas. Ele tinha vontade de chegar em casa.

No entanto, ele já conhecia todos os caminhos. Ele sabia que aquele momento trazia duas escolhas, mas somente um final. Era inevitável. Bastava para ele ceder ou lutar. O ringue era seu, a fortaleza era do adversário. Jogar em casa, contra o melhor time. Por um momento, lembrou-se da formatura do último filho ainda por vir, lembrou-se do terno por escolher, lembrou-se da mulher e seu vestido. Tarde demais para tudo.

"Não lhe devo nada." Concluiu. "Pois bem!" Um estalo seco, uma queda livre, uma noite.

O último passageiro lançou golpe certeiro sobre o sujeito que caiu sobre o motor. "Vamos, pai".


(Leo Pessoa)













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