Oh, sim! Minha vontade: obedeço-a ou me falta força até para isso? Anestesiado estou? Mumificado então? Não. Certamente não, leitor. Com certeza não. É pior. Se chama cansaço, cansaço de si, cansaço de ser. Parece-me que já vivi o suficiente e nada mais me enche os olhos. Lembro-me meses atrás, antes dessa cólera me acudir. Lembro-me com que vigor e entusiasmo lia as obras dos grandes pensadores e com que paixão e encanto contemplava uma bela arte. Todas as frases me eram um deleite; todos os traços dos pincéis pareciam sair da tela e pintar-me ao mesmo tempo. Me sentia sim uma obra de arte, uma parte artística. Em meus delírios joviais, sempre me perguntava, sentado em algum lugar fresco e com luz: qual pintor teria essa capacidade de me exprimir em tela? Van Gogh ou Caspar Friedrich? Nesses delírios eu me totalizava, me inteirava de si e me encorajava. Viver é muito perigoso, meus caros e caras, mas a realidade é coragem e se nos apresenta desta maneira: a maneira corajosa. Virtuoso é aquele que possui coragem. Sim, eram bons tempos. Certamente eram. Mas sabem de uma coisa? Sempre fui um homem solitário, um humano solitário. Agora que tenho essa visão. Entretanto, meu gosto pela vida me fazia sempre estar acompanhado. Algo que era invisível mas presente ali em todo momento. Em minhas andanças nos dias de chuva, em meus exercícios físicos matinais, em meus banquetes humildes, em minhas apaixonantes loucuras. Dizem que aquele que, mesmo sozinho, se sente bem acompanhado, é porque esta pessoa alcançou uma plenitude ideal. Uma meta de vida. Um desejo e anseio. Um sábio. Tal eu era: um jovem sábio. Apenas 19 anos de pura experiência fenomênica-filosófica da vida. Vos confesso que já fui um entusiasta do positivismo, mas com o tempo percebi que há algo nessa vida que escapa aos números e fórmulas. Me digam qual a equação que representa o amor, a sensação, os delírios, os sonhos, o pôr-se em obra, o transformar-se em obra. Como se equaciona as memórias? Como se equaciona as experiências? Não quero mistificar nem cientificar a realidade. Eu quero é realidade. Quero vida enquanto vida. Quero viver vivendo.
Mas quão sou choramingão e inconveniente. Cá estou eu, aquele vigor em pessoa agora desabafando com quem nem conheço. Se me permite, meu ou minha caro ou cara leitor ou leitora, contarei um pouco do que aconteceu com este homem forte aqui.
Como deves presumir, pois presumo que sejas atento e inteligente, sempre desfrutei de bons recursos financeiros. Trabalho num pequeno jornal aqui da comunidade. Escrevo pequenos causos e pequenas novelinhas. Somente para entretenimento de pessoas que já não mais querer viver e ficam sentadas o dia inteiro. Como disse, o jornal é pequeno e, por conta disso, nunca tive fama nem nada. Ando na rua como qualquer pessoa comum anda. Às vezes acho até que sou mais comum que muitos. Nada do que eu era podia ser transcrito para o jornal, pois eu recebia ordens de como a história deveria desenvolver-se. Nada polêmico, nada profundo, nada crítico. Assim mesmo como as pessoas comuns são: rasas. Desse modo, nunca tive prestígio. Apenas trabalhava para sobreviver.
Certo dia, caminhando para o jornal, que ficava há uns três quilômetros de minha casa, reparei que havia uma senhorita pintando uma grande tela, apoiado num tripé, ao lado do rio e da ponte. A paisagem que havia ante aquela senhora era extremamente bela. A ponte possuía ornamentos pintados em branco, uma grade acinzentada nas laterais, um terreno liso e, num todo, uma aparência nobre e viva. Contudo, quando olhei de soslaio para a pintura, percebi que havia uma mistura de um preto e branco, assentados numa forma macabra e fúnebre. Me causava um pavor enorme ao olhar aquela arte.
Com o passar do tempo. Percebi que aquela moça sempre estivera ali, parada e pintando, mas nunca havia a notado. Parece-me que de súbito a presença dela tinha aguçado minha atenção. Será que era a pintura? O que ali me tinha causado tanto pavor e medo? Eu, que sempre admirei obras de arte. Desde então, fiquei cada vez mais pensativo e cabisbaixo. Se antes andava ereto e com postura altiva até o trabalho, agora ando devagar e contemplativo. Aquela pintura não saia da minha mente. Meus pensamentos só se voltava à ela. Ela, a pintura. Não ela a autora, ela. Dormia pensando e acordava suado, devido um pesadelo que havia tido. O pesadelo, se me lembro bem, era como se eu estivesse dentro do quadro. Dentro daquela profusão de preto e branco. Dentro daquele preto cor de carvão e daquele branco nevoado. Eu gritava por socorro. Conseguia ver o mundo colorido do outro lado, mas nada vinha a meus pedidos. Até que, já quando amanhecia, o rio se enchia e tomava conta de tudo, me afogando. Acordei suado e com a cabeça pesada. Assim durou bastante dias.
Não é de se estranhar que minha produção literária tenha sido comprometida. Não conseguia pensar mais. Pedi umas semanas de férias para me recompor. Meu chefe, que não era uma boa pessoa, assim como todos os chefes não são, só me liberou depois que apelei à uma promessa que faria horas extras quando retornasse.
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A triste obra
Short StoryUm jornalista se descobre ao tentar descobrir o significado de uma obra de arte. Assim, a obra acaba conhecendo primeiro o jornalista. Observação: deixem comentários do que acharam. Obrigado.