Esse tempo longe do trabalho foi marcado por uma profunda meditação de meus sentimentos. De fato conversei comigo. Viam-me falando aos altos na rua e me olhavam sempre com aquela cara quadrada: “Será que ele enlouqueceu?”. Podia ouvir seus pensamentos extrapolarem suas cabeças. Eu, claro, não me importava muito com esses pensamentos flutuantes que saiam daquelas bolas cabeludas. Minha atenção estava voltada a outra coisa. A obra e a artista.
Três dias depois do meu pedido de folga, resolvi acordar cedo, como se fosse trabalhar, e refazer o caminho de costume. Chegando à ponte, vi aquela mulher. Seus cabelos negros e volumosos, sua pele escura e tingida. Seu rosto arredondado de nariz abaulado. Toda essa fisionomia lhe dava um ar de uma pessoa vivida e sábia. Realmente essa senhorita me causava um arrepio na espinha. Não se enganem, caros leitores, de modo algum me senti atraído por ela. Sou um erudito e vivo somente pelo conhecimento. Estou bem assim e retendo morrer assim. O quadro estava ao lado dela, derramado no chão, como se ela estivesse se preparando para pintá-lo.
Naquele momento, não contive-me e fui ao seu encontro. Como ela estava fronte ao lago, tive de chegar por sua traseira. Eu estava há uns cem metros dela e, confesso que, durante esse pequeno percurso, relutei constantemente comigo mesmo. Entretanto, uma força me puxou para ela e fui. Chegando na sua presença, principiei a conversa:
- Bom dia, senhorita! Como vais? Perguntei com medo.
- Normal, cavalheiro. E o senhor? O que trazes até mim?
Parei de respirar por um estante, pois não sabia o que responder-lhe. Como diria a ela tudo aquilo que senti quando vi sua pintura?
- Ora, pareces bem agitado. Há algo de errado com você? Queres ajuda? Juro que seu eu puder, ajudarei com toda certeza.
Sua voz era forte e firme. Grave e consistente. Uma voz forte realmente.
- Desculpe-me se pareci atordoado. É que tenho que lhe confessar algo, entretanto, não sei como. Nem mesmo por onde começar. Nem mesmo se vou terminar...
- Não te intimides, sou uma pessoa de confiança. Não tenho família nem bons amigos para te trair o segredo.
Aquele ar de independência era demasiado atraente, aliás, ela era uma bela moça. Mas não. Não era essas minhas preocupações. Não era esse meu objetivo. Um homem na vida de uma mulher independente só atrapalharia. Os homens são idiotas, meus leitores. São sim, acreditem.
- Bom, parece mesmo que você sabe o que faz. Então lhe direi, mas já te aviso: não há importância se me trair, pois ninguém me conhece e, assim como você, estou sozinho no mundo. Há uns dias atrás, vi-te pintando na ponte. Vi também sua pintura. E é ela que me fez vir até você, moça. Sua pintura me causou um alvoroço total. Olhei-la e me apavorei. Como pode alguém, diante de tal bela paisagem, como nossa ponte e o horizonte a frente, pintar um quadro negro e sem vida? Como pode? Parece simples e bobo meu relato, mas sou facilmente afetado pela arte. Sua pintura... sua pintura foi demasiada angustiante. Me perdoe se pareço idiota.
Em momento algum aquela moça tirou seus olhos de mim. Um olhar penetrante e frio. Convicto. Ela vendo que meu desespero em contar o relato tinha aumentado e que, me encontrava, depois de finalizá-lo ofegante, cortou o silencia:
- Oh, moço. Se acalme. Deixe-me adivinhar: nunca lhe ocorreu tragédia alguma em sua vida. É isto. Você não sofre. Você está estático. Você nunca se decepcionou. Você nunca sentiu a força mais poderosa do ser humano, o sofrimento. Tu vives uma vida medíocre e achas que é feliz. Tua vida é colorida, meu caro, colorida demais. Porém, quando viste minha pintura, percebeu, sem saber, o sofrimento. Minha pintura é sofrimento. E você nunca sofreu. És, desde pequeno, um protegido. Acredita ter-lhe acontecido desgraças. Acredita que a solidão que sentes é demasiado pesada. Mas não. Não. Oh, não! Tua solidão é apenas um sonho, um muro que criaste para ter a ilusão de que sentiste todos os sentimentos do mundo. Entretanto, os sentimentos do mundo são grandes e são muitos. Tu não saíste de teu mundo. Teu mundo desabou no primeiro contato frívolo com a tristeza. Vês como é frágil, senhor que não sei o nome? Vês que não é sentimental mas sim um alienado amante da sétima arte? Vês como te falta vida ainda? Acredito que agora consegue ver. Não sou moralista, tampouco o espírito de nossa época. Sou apenas uma mulher. Uma mulher interiorizada. Uma mulher só. Sou uma forte mulher. Agora, voltes para sua vida medíocre de sempre. Volte e vá viver o comum novamente, seu tolo. Passe na ponte e chore por saber que “a vida é bela e mística”. Acredite em toda essa idiotice.
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A triste obra
Short StoryUm jornalista se descobre ao tentar descobrir o significado de uma obra de arte. Assim, a obra acaba conhecendo primeiro o jornalista. Observação: deixem comentários do que acharam. Obrigado.