Despediram-se das garotas e se misturaram ao demais alunos que circulavam em magotes para fora do pátio da escola. Aldo percebeu que Heleno estava mais calado que de costume, mas não quis se intrometer, talvez acontecera algo entre ele e Judite. Fosse o que fosse, iniciou quando ele e Márcia voltaram a se juntar a eles.
Diante do bicicletário, ambos resolveram as senhas de seus cadeados e tomaram as bicicletas. Estavam no meio do caminho quando o pedal de Heleno travou.
– Merda! Isso já aconteceu...
– Eu nunca havia visto. É uma desculpa para não perder mais uma carteira?
– Não, acho que forcei demais hoje pela manhã. Pode ir, vou levar ela no tio Gerônimo. Ele dá um jeito.
– Vamos lá, então.
– Não precisa ir, sério. Você deve estar com fome.
– Você sabe, eu manjo um pouco de...
– Não, – interrompeu o outro de vereda – eu dou um jeito.
– Ok. Toca aqui – tocaram os punhos. – Eu podia dar uma olhada na bicicleta, mas você está estressadinho. Até mais.
– Pode deixar.
No que Aldo sumiu no horizonte, Heleno pedalou para o sentido inverso, entrando em um prédio em construção. Abandonou a bicicleta e sentou em um banco de madeira. Tirou do bolso o estojo e o abriu cuidadosamente. Era, de fato, um par de lentes de contato. Suspirou.
Retirou de sua pochete um espelho pequeno, grudou-o com chiclete na parede de tijolos e aproximou o rosto. Já havia colocado lentes antes, em uma festa do Dia das Bruxas.
Pôs as duas nos olhos e tão logo fez isso, o seu telefone celular tocou. Tomado por um sobressalto, sacou o celular do bolso. Observou o número desconhecido por alguns segundos e atendeu.
– Você colocou as lentes. Era o que esperávamos.
– Como sabe meu número?...
– Você acha que conhece as pessoas? Você acredita nelas o tempo todo?
– Do que está falando?
– Quando você é interessante aos outros? Quando alguém precisa de você?
– Não sei, isso é... Que conversa furada é essa?
– Simples... Com as lentes, você verá... Mas você deverá redobrar a cautela, não deixe que notem que você está vendo a verdade.
Heleno caminhou para fora com o ouvido colado no telefone celular. Estudantes circulavam nas calçadas, trabalhadores se dirigiam aos refeitórios públicos, donos de cachorros retornavam de seus passeios.
– Consegue ver?
– Vejo pessoas.
– Não, você vê aparências. São vultos.
– Estou vendo tudo o que sempre vi, nada de diferente.
– Exato: você está vendo o que sempre viu, sem perceber os padrões. Agora atente aos padrões.
– Amizades? Parentescos?
– Amizades... Já percebeu os pares? As relações de amizade mais íntimas se dá em pares... Pense como sempre há o melhor amigo com o qual, de uma maneira ou de outra, abrimos nossas vidas; compartilhamos nossas experiências, segredos.
– Por mim, tudo bem.
– Olhe ao redor. Vê como sempre há um amigo por perto?
– Estou vendo e é normal.
– Na sociedade atual, para cada pessoa, há um melhor amigo.
Olhou para as pessoas diante dele. Todos estavam em dupla; somente algumas exceções. Os trabalhadores, as crianças, os jovens. Lembrou-se do melhor amigo do seu pai, do melhor amigo do irmão, a melhor amiga da sua mãe... até a irmã mais nova vivia brincando com uma melhor amiguinha. O mesmo era visto com os vizinhos, os conhecidos, os parentes. Todos tinham um amigo próximo.
– Bem, entendi. Mas isso é legal.
– Seria legal se você não estivesse com as lentes que te dei.
– Seria?
– Observe sobre os ombros esquerdos das pessoas.
Os olhos de Heleno se estreitaram, sentiu o corpo amolecer. Para cada par de pessoas, sobre o ombro esquerdo de uma delas havia uma luz pairando. Se alguém não possuía a luz, ela estava sobre o ombro de quem o acompanhava. Lançou o olhar para mais além e passou a enxergar dezenas de luzes desfilando de um lado para outro.
– Percebeu?
– Essas lentes, elas têm problema...
– Não, a humanidade tem um problema.
Sentiu a língua secar, estremeceu. Um menino que morava perto de sua casa atravessou a rua, chamou: – Daí, Heleno! – O amigo do jovem vizinho também levava uma luz sobre o ombro. – Fica frio, Heleno. Ninguém vai saber – disse dando uma piscada.
– Ele me percebeu? – Falou ao celular.
– Eles não podem perceber. Principalmente se você não der bandeira.
O garoto continuou andando e encarando-o, pôs o dedo diante da boca.
– Acho que ele está falando sobre termos cabulado aula – disse Heleno aliviado.
Voltou para dentro do cercado da obra e sentou-se olhando para o vazio. – Quem são eles? O que querem de nós?
– Por enquanto, não me é permitido revelar isso. O mundo é uma farsa oculta em um véu de ilusões. Todas aquelas pessoas estão encurraladas, conduzidas como uma manada sob o olhar de um outro povo, uma espécie vigilante e controladora. Após a pausa disse: – Agora tenho que desligar.
– Espere, eu...
A ligação foi encerrada.
Discou para o número registrado. O número já não existia.
Respirou profundamente e reunindo coragem, pedalou a bicicleta e partiu rumo à casa. Pelo caminho, luzes, poucos deles estava sós, a grande maioria acompanhada. Com prudência, não detinha o olhar em ninguém, não esboçava nenhuma reação ou expressão que o acusasse.
Ao chegar, largou a bicicleta no gramado e sentou-se à mesa para o almoço, onde já estavam todos reunidos. Não haviam luzes ali: seu pai, a irmã mais nova e a mãe, limpos. O falatório habitual de sua família seguia, enquanto os pensamentos entravam e difusão.
A mãe perguntou algo e ele respondeu mecanicamente. Abandonou a mesa sob os protestos do pai por ter deixado toda a comida no prato.
Entrou para o quarto e trancou a porta. Ligou a TV. Era o jornal do meio dia; podia enxergar a luz em todos os repórteres e âncoras. As pessoas nos comerciais também, até os atores na propaganda da telenovela.
Eram aquelas lentes, ele pensou. Talvez o garoto maltrapilho o estivesse fazendo de bobo com lentes de contato aparelhadas com algum dispositivo eletrônico capaz de fazê-lo ver coisas. Seria possível? Mas a troco de quê?
Alguém bateu à porta.
Do outro lado, a voz de Aldo: – Ah, o seu tio foi rápido no conserto? A sua bike está tinindo.
– Eu... é, foi... – balbuciou.
– Vai abrir a porta, ou vou ficar esperando até quando?
– Claro. – Abriu a porta lentamente.
Heleno olhava para o chão, para os pés do amigo. Não queria confirmar o que já previa, negaria tal possibilidade. Aldo era um cara muito legal, um amigo fiel. Tanto tempo unidos, os momentos esplêndidos que compartilharam; tudo aquilo não podia ser uma mentira, algo inadmissível. Era a hora de encarar; de tirar a limpo o inevitável.
As pernas vestidas em jeans, a barriga da camiseta com a estampa dos Ramones; na mão direita de Aldo, duas carteiras de cigarros, na esquerda, a maleta de seu notebook – o rosto familiar; sobre seu ombro esquerdo, uma luz cintilante.