Pedalou rápido. O pai gritou da porta: – Vai deixar o Aldo aqui? O que há contigo, seu doido?
Com os olhos lacrimejantes, ele seguiu. Tinha a certeza de que não era o único que sabia, e precisava de esclarecimentos sobre as suas descobertas; elucidar os fatos. Havia somente um meio de se saber o que estava acontecendo: reencontrar o garoto maltrapilho. Mas como? Não sabia nada sobre ele, exceto o lugar onde o viu pela primeira vez. Seria jogar na sorte, mas tratava-se da única possibilidade.
Atravessou o matagal, subiu o morro. O tempo guinou, o céu cobriu-se de nuvens. Heleno gritou para as árvores: – Apareça! Preciso falar com você!
Não houve resposta.
Sentou-se em uma pedra; fungou. Ventou mais forte; ouviu-se ao longe um trovão.
Ao levantar o olhar, deu-se com Aldo subindo o morro. Não havia para onde refugiar-se, ele já o havia visto. Aldo caminhou muito devagar, mostrando as mãos. – Olha – disse ele –, não vamos ser dramáticos, sei pelo que você está passando.
– Sabe?
Aldo sentou ao lado do amigo, espalmou as mãos nos joelhos, respirou fundo e olhou ao redor. – Você precisa mesmo saber, não é? Bem, acho justo você saber...
Heleno afastou-se um pouco de seu amigo, respondeu: – Ainda bem que você acha.
Após isso, Aldo iniciou:
– Em 1987, fora dos olhares das Américas, da Europa e da Ásia, os Russos receberam uma visita que mudaria os rumos da história. A União Soviética teve demonstrações por parte de seus visitantes de tecnologias então inimagináveis e capazes de torná-los os mais poderosos do planeta. Porém, para terem acesso ao que o novo povo trouxe consigo, teriam que ser doutrinados por eles durante alguns anos. As aparências foram mantidas, o mundo demonstrava seguir normalmente; mas só aos cidadãos comuns, não aos estados e governantes; algo se modificava. Quatro anos depois, a União Soviética deixou de existir e a Guerra Fria teve seu fim.
– As forças responsáveis por colocar a guerra a baixo, passaram a intervir veladamente no avanço da humanidade. Fosse através da TV, do cinema e entretenimento em geral, da comida, cigarros ou de frequências eletromagnéticas em torno da terra; o mundo foi preparado para, em 1992, a vinda dos Palácios. Imensos hexágonos metálicos, cobriram pontos estratégicos povoados ao redor do mundo e, desde então, não se ouviu mais falar de guerras, drogas, violência ou até mesmo traições conjugais. Tais assuntos passaram a ser descartados, pertencentes somente ao passado e à ficção, e ainda assim tratados com reservas.
– Um novo horizonte de avanços nos campos da ciência e tecnologia se abriu, e a qualidade de vida tornou-se o panorama...
– Não cai na conversa deste cara! – Gritou o garoto maltrapilho surgindo de dentro do matagal.
– Oras – disse Aldo –, olhe só: um revoltadinho. – Riu dele desdenhosamente.
– Vocês não podem nos alcançar, e isso deixa vocês loucos!
– Para que vamos alcançar as castas inferiores? Não precisamos disso.
Mais um relâmpago estrondou.
– Se eu quiser, posso te esmurrar a cara!
– Pode mesmo? Se fizer isso, você está ferrado!
Heleno se levantou. – Vamos parar com isso! – Exclamou.
– Diga a ele – o garoto encarou Aldo –, vai ser melhor.
– Diga você! – Mostrou os dentes. – Não és um homem livre?
Gotas de chuva salpicaram o chão e logo transformaram-se em uma chuvarada. Um vendaval varreu as copas. Aldo e o menino olharam-se nos olhos; permanecendo ambos paralisados. Heleno observou a cena por alguns minutos, sem reação. Aldo riu, o menino ficou tenso, arregalou os olhos, fez um bico. Após quase um minuto, o menino chorou.
– Vocês são bons, a gente sabe. Mas sabe, temos que nos enturmar com alguém, né? Eu fico com os caras d'outro lado.
– É isso aí. Volta pra lá!
O menino saiu correndo em direção das árvores. A chuva torrencial impediu de ver em qual momento ele sumiu. Aldo voltou-se para Heleno: – E então? Eu até gosto de banho de chuva, mas acho que não convém agora, não é? – Soltou uma risada e abraçou o amigo.
Eles conversaram mais um pouco. A história fora entendida de forma parcial, porém satisfatoriamente. Heleno soube que pouca gente não sabia do povo que os acompanhava, até mesmo os mais novos. Quem ainda não sabia, saberia de um jeito ou de outro, e justamente por conhecer a história é que estavam dispostos a conviver e serem gratos aos seus companheiros.
Despediram-se diante da casa de Heleno e este entrou. Tomou uma chuveirada, pôs uma roupa seca e foi até a cozinha comer algo. Caminhou para a sala e encontrou o pai assistindo TV.
– Então, você já sabe? – Indagou ele.
– Sei, sim. Acho legal eles zelarem por nós.
O pai ficou reticente. – Só isso? – Fez uma pausa. – Sei que talvez eu precise ser rude com você para te falar...
– Eu sei de tudo, não se preocupe – respondeu o rapaz.
– Também te falaram sobre sua verdadeira mãe?
– Mãe? – Reagiu Heleno intrigado.
– Sim, sua mãe. E sobre... miscigenação?
– Miscigenação?
– Não te falaram...
Heleno olhou para o lado. Teve um mal pressentimento. Viu-se no espelho. Recordou de que não havia retirado as lentes. No seu reflexo, um ponto luminoso sobre o ombro.
Com os olhos fixos na TV, o pai respondeu. – Sim, miscigenação.
FIM