Beth Randar acordou com o som do trânsito pesado invadindo sua janela. Era um dia agitado. Todos estavam com pressa, já que era o último dia antes da Grande Hibernação Coletiva.
No ano de 2993 a exploração espacial estava muito avançada. Muitos dos problemas das gerações anteriores foram resolvidos de forma eficiente com relação à sobrevivência a longo prazo no espaço, incluindo naves massivas com ambientes autossustentáveis que podiam viajar indefinidamente quase à velocidade da luz. Tudo funcionava muito bem e a humanidade já explorava o espaço sem grandes problemas. Com exceção de um inconveniente incontornável: mesmo à velocidade da luz, demora muito pra chegar em qualquer lugar.
Além disso, uma vez que o espaço-tempo é uma grande sacanagem do universo, o tempo passa mais devagar para os exploradores espaciais em relação aos seus companheiros em terra, o que significa que cada esposa, filho, amigo, cachorro que fica para trás estaria morto quando do retorno dos exploradores. Toda a vida estaria uma geração à frente: os exploradores perderiam todos os filmes, bandas, séries de TV, todas as maracutaias políticas e as besteiras da cultura pop. E isso não é correto. Alguém precisava pensar naqueles pobres exploradores espaciais.
Então as Nações Unidas propuseram um protocolo pra resolver esse problema: sempre que uma nave fosse lançada em uma longa jornada, todas as pessoas na Terra entrariam em hibernação coletiva, esperando em sono profundo até o retorno dos heróis. Por incrível que pareça, todos concordaram, afinal, por que não, nós precisamos manter a economia saudável, e os exploradores espaciais são ricos e podem gastar muito dinheiro e pagar muitos impostos, então nós esperamos por eles.
Mas agora Beth Randar se encontrava numa encruzilhada. Ela não queria ir dormir. Não com o resto do mundo. O que ela queria era fugir de todo mundo e ir viver em meio à natureza. Beth Randar não gostava de pessoas. Ela queria ser deixada sozinha. E o mero pensamento de ficar inconsciente junto com o resto do mundo era suficiente para fazê-la sentir-se sufocada. Ela queria isolamento, isolamento verdadeiro, pois sempre pensou que o isolamento era algo lindo.
Logo, a Polícia da Hibernação bateu na porta dela, exigindo saber por que não estava num dos prédios de hibernação criados pelo governo ou num dos prédios da iniciativa privada, criados pelas maiores redes hoteleiras do mundo. Beth Randar não queria ir pra nenhum, pois dizem que nos prédios governamentais eles mantêm você com fluidos que viciam em comida processada, enquanto os prédios dos hotéis tocam aquelas musiquinhas de elevador durante toda a hibernação. Eles dizem que é pra relaxar a pessoa, mas Beth sabia que isso era mentira. Toda aquela música era um jeito de vender mais discos depois do Despertar. Ela própria havia comprado um disco do Bitch Baritone na última temporada, e ela odiava aquele cara, mas se sentiu compelida a comprar mesmo assim. Malditos bastardos.
Ela decidiu que fugiria para salvar sua vida, fugiria para muito longe, fugiria até encontrar alguma vegetação fora dos limites da cidade. Seria preciso correr muito, pois as cidades se tornaram um aquário fechado e separado da natureza exterior, pois assim fica mais aconchegante e o governo pode vigiar melhor as pessoas. A única coisa que sai das cidades é o sistema de esgoto, que joga os resíduos em qualquer lugar que seja conveniente para os planejadores urbanos.
Beth começou a descer pela janela até a rua lá embaixo. As pessoas corriam para todos os lados com rostos preocupados e olhos de estresse. Carros buzinavam, gritos soavam, policiais coordenavam com técnicas intimidantes. Beth estava acuada e não sabia o que fazer, até que avistou um bueiro no chão e pensou consigo mesma, “vai ser uma fuga de merda, mas uma fuga mesmo assim”.
Despercebida em meio ao caos da contagem regressiva, Beth adentrou o sistema de esgoto subterrâneo. Certamente cheirava como esgoto. O rio do que parecia lava marrom corria selvagem diante dela. Ao lado, Beth avistou uma poltrona de couro usada, flutuando como um salva-vidas acolhedor, como se pedisse à Beth, “venha, sente em mim, assista ao seu programa preferido, coma uma batatinhas, beba um refrigerante, pare de pensar sobre a vida”. Aceitando a inevitabilidade de sua situação, Beth subiu na poltrona confortável e começou a navegar pelo rio de merda marrom, surfando ondas de uma eterna enxurrada de excremento cheia de curvas que parecia seguir para sempre e sempre, nunca chegando a lugar algum. Ela começou a sentir um vazio por dentro.
Porém, eventualmente ela alcançou o fim do túnel. Beth foi catapultada, ainda sentada na poltrona, por uma cachoeira de esgoto, e depois de cair e cair, ela atingiu o chão com uma força que provavelmente a mataria, não fosse o lago de merda acumulada que amorteceu sua queda.
Olhando ao redor, Beth finalmente encontrou o que procurava. A natureza rodeava o lago de merda como se não fosse nada de mais. Uma grossa parede de árvores aparecia no horizonte, e Beth navegou pelo lago até alcançar a margem. Descendo da poltrona, ela olhou para trás, e coberta de merda, Beth observou a cidade isolada ao longe. Engraçado como a natureza continuou crescendo fora dos limites da avançada civilização humana, ela pensou. Agora os humanos estavam se preparando para perturbarem outros mundos enquanto outros humanos se preparavam para dormir, e finalmente tudo ficaria em silêncio pra variar.
Com um suspiro, Beth pensou que ela e a natureza teriam o descanso que mereciam. Ela podia ouvir os pássaros e o vento, podia sentir o frio da terra e o calor do sol. Com o passar dos dias, Beth fez um ninho de folhas mortas e galhos caídos. Não demorou até encontrar um lago e pescar o primeiro peixe. A água também era boa. Ela estava se acostumando com o silêncio de palavras e o alívio de não ter outro ser humano ao redor quando começou a vomitar violentamente. Acontece que toda aquela merda do esgoto resultou num severo caso de infecção mortal. Mas ela não se importou. Beth sabia que já estaria morta quando os outros acordassem, sabia que a vida continuaria para eles, sabia que eles continuariam assistindo seus filmes de super-heróis, ouvindo sua música pop lucrativa, trabalhando em seus empregos inexpressivos, e também encarando o vazio sem perceberam que fazem parte dele, mas tudo bem, Beth não se importava com tudo isso, a única coisa que importava agora era a liberdade que sentia por não precisar nunca mais ter que lidar com as idiotices da humanidade. E isso era realmente lindo, ela pensou, antes de vomitar de novo.