RETRATO

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Eu era filho único e morava com meus pais em São Paulo, ele tinha algumas lojas de departamentos e a sede ficava na capital, mas suas viagens eram constantes para as filiais espalhadas pelo país, ele cuidava muito bem desse negócio herdado por ele e minha tia Ester, do meu falecido avô..

Meu pai era meu herói e por mais que as suas viagens roubassem parte do nosso tempo, quando estávamos juntos aproveitavamos cada momento. Ele era generoso e dividia sua rotina de negócios comigo e a minha mãe. Eu fui batizado com o mesmo nome dele e isso me fez ter ele como minha maior referência.

A minha mãe chamava Michele, e foi a responsável pela minha educação, era ela quem passava mais tempo comigo e fazia o papel mais árduo. Meu pai me fazia divertir, enquanto minha mãe me limitava nas horas necessárias. Ela era muito consciente socialmente e desde pequeno me conscientizava sobre questões sociais, de maneira didática. Ela sabia o que era ser uma mulher negra em um país com herança escravocrata e sempre falava que a nossa realidade de família negra, era privilegiada em relação a maioria dos nossos.

Hoje eu enxergo como aquela família era fantástica, de como eu tinha a sorte de nascer em um lar incrível, mas isso me foi arrancado, o que destruíu todos os meus pilares.

Eu fui crescendo e quando as viagens de negócios do papai coincidia com minhas férias, viajavamos juntos. E foi numa dessas viagens que meu inferno começou, eu vivir o pior pesadelo da minha vida e ele me assombra até hoje.

Fomos para Gramados no Rio Grande do sul, era a cidade natal dos meus pais e foi lá que eles se conheceram e se casaram. Era a oportunidade de conhecer minha família, meus avós, meus tios e primos, pois apesar de já ter estado ali outras vezes quando menor, não tinha nenhuma lembrança. A cidade abrigava a segunda maior loja da rede da família, e por ser a cidade em que minha família cresceu, a empresa empregava vários amigos dos meus pais.

Em um domingo fomos almoçar na casa do Álvaro, ele era um amigo de infância do meu pai e gerente da loja da cidade. Me lembro vagamente daquele dia, recordo da sua esposa Bianca, que estava grávida e do seu filho que era três anos mais velho que eu, não lembro o nome, mas ele devia ter em torno de 10 anos.

Tudo corria bem, os adultos foram para dentro da casa conversar sobre negócios, enquanto as crianças brincavam na área externa daquela grande casa, mas de repente o clima mudou, lembro de ouvir uma discussão, dos gritos e por fim, do barulho dos disparos que nenhum desses anos fizeram com que apagassem das minhas memórias.

Me afastei da área da casa do Sr. Álvaro, quando o avistei sair furioso, armado, atropelando tudo. Fiquei muito assustado e então corrir para dentro da casa, na tentativa de encontrar minha mãe, mas a cena que encontrei foi terrivelmente inesquecível.

Meus pais estavam caídos, minha mãe por cima dele, todos ensanguentados, aquilo me chocou e não percebia nenhuma reação deles. Olhei para o lado e avistei a sra. Bianca aparentemente chorando e desesperada. Não demorou muito para a casa estar cheia de estranhos e fui arrancado de lá chorando, sem entender direito o que houve ali.

E essas são as principais memórias daquele dia, do último dia que estive com meus pais, do último dia que fui feliz, pois a partir dalí, nada fez com que eu tirasse aquele barulho do pensamento. Todas as tentativas foram falhas, nem mesmo o afeto ou a pena de quem me restou evitou que aquele dia criasse raízes em mim e despertassem sentimentos tão fortes.

Perdido em mimOnde histórias criam vida. Descubra agora