Parte 2. Lua

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— O arauto de Anhangá deve ser mantido prisioneiro por toda a vida — Rafaela explicou. — Depois que ele morre, Anhangá escolhe uma criança como seu novo arauto. Para evitar essa prisão, ele prefere alguém que viva em um lugar distante dos outros arautos. Eu já sabia que chegaria o dia em que eu seria caçada.

Tinham permanecido no galpão por quase uma hora. Rafaela se recuperara o suficiente para encerrar sua missão. Depois que tudo estivesse terminado, ligaria para os pais; eles precisavam saber que sua identidade não era mais um segredo.

No momento, Priscila e ela acabavam de pisar no asfalto da rua e deixar os paralelepípedos da saída do engenho para trás. O cheiro do rio, embora fraco, fazia-se presente. A casa que procuravam estava nos arredores.

— Mas você não fez nada de errado! Você é uma boa menina! — Priscila ficou inconformada.

Rafaela mantinha a mão direita relaxada ao lado do corpo. Apenas por alguns segundos, ergueu o antebraço até encostá-lo na cintura e virou a palma da mão para ver o ferimento. Apesar dos poderes de cura provindos das divindades indígenas, a queimadura de Guaraci arderia por dias e uma cicatriz seria inevitável.

— Além de proteger os animais e reger o submundo, dizem que Anhangá traz má sorte — disse ela. — Tem até um lenda, que eu duvido da veracidade, sobre o descobrimento do Brasil. Segundo ela, o arauto de Anhangá foi libertado de seu cativeiro pelo arauto de Jururá-Açu poucos dias antes dos portugueses chegarem. Por causa disso, o plano superior dos deuses se transformou em caos. Os arautos antigos eram considerados seus representantes... mensageiros... guerreiros honrados... Atualmente, não passamos de armas. — Soltou um riso infeliz de escárnio. — Quando se revelou a mim, Anhangá contou que eu deveria aprender a me defender, esconder minha identidade e listou meus "direitos e deveres"... Até aí, tudo bem. O ruim foi ele terminar dizendo algo do tipo: "faça o que der". Parece que ele não tem nenhuma expectativa sobre mim. — Entortou os lábios para o canto, frustrada.

— Você está fazendo um ótimo trabalho! O melhor de todos! Anhangá também deve achar que você é uma boa menina! — Priscila a encorajou.

Rafaela sorriu e agradeceu acariciando a cabeça dela com a mão esquerda.

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Sem contar os insetos e animais pequenos, a rua estava vazia quando Rafaela e Priscila a atravessaram para observar de perto uma casa azul-clara. Separando-as do imóvel, havia uma grade baixa, que continha um portãozinho e terminava em dois pilares de cimento de meio-metro. A luz vinda da janela da frente denunciava a presença dos moradores.

— Lembre-se: não precisa ter medo de rojões. Se ficar assustada com algum barulho, preste atenção nos seus tutores; se eles estiverem calmos, então não precisa se preocupar.

Priscila não reagiu ao conselho. Seu foco imperturbável estava depositado na janela acortinada.

Rafaela conhecia bem essa sensação de voltar para casa após muito tempo. Sorriu com satisfação por ao menos poder completar a tarefa e apertou a campainha no pilar com o indicador esquerdo.

Seguido ao toque que soou, Priscila latiu, entusiasmada, para apressar seus tutores. Sua cauda agitada refletia seu estado de espírito.

A porta da casa abriu e um jovem adulto apareceu no topo da escadinha da entrada.

— Priscila! É você?! — Ele saltou os degraus e abriu o portão; mal podia acreditar no que via. — Minha menina! Como foi que...? Menininha inteligente! — Agachou-se e acabou caindo sentado quando Priscila pulou nele, desesperada. — Boa menina!

Arauto do submundoOnde histórias criam vida. Descubra agora