Os guerreiros tabajaras, acorridos à taba, esperavam o inimigo diante da caiçara.
Não vindo, eles saíram a buscá-lo.
Bateram as matas em torno e percorreram os campos; nem vestígios encontraram da passagem dos pitiguaras; mas o conhecido frêmito do búzio das praias tinha ressoado ao ouvido dos guerreiros da montanha; não havia duvidar.
Suspeitou Irapuã que fosse um ardil da filha de Araquém para salvar o estrangeiro, e caminhou direito à cabana do pajé. Como trota o guará pela orla da mata, quando vai seguindo o rastro da presa escápula, assim estugava o passo o sanhudo guerreiro.
Araquém viu entrar em sua cabana o grande chefe da nação tabajara, e não se moveu. Sentado na rede, com as pernas cruzadas, escutava Iracema. A virgem referia os sucessos da tarde; avistando a figura sinistra de Irapuã, saltou sobre o arco e uniu-se ao flanco do jovem guerreiro branco.
Martim a afastou docemente de si, e promoveu o passo.
A proteção, de que o cercava a ele guerreiro a virgem tabajara, o desgostava.
— Araquém, a vingança dos tabajaras espera o guerreiro branco; Irapuã veio buscá-lo.
— O hóspede é amigo de Tupã; quem ofender o estrangeiro ouvirá rugir o trovão.
— O estrangeiro foi quem ofendeu a Tupã, roubando a sua virgem, que guarda os sonhos da jurema.
— Tua boca mente como o ronco da jibóia! exclamou Iracema.
Martim disse:
— Irapuã é vil e indigno de ser chefe de guerreiros valentes!
O pajé falou grave e lento:
— Se a virgem abandonou ao guerreiro branco a flor de seu corpo, ela morrerá; mas o hóspede de Tupã é sagrado; ninguém lhe tocará, todos o servirão.
Irapuã bramiu; o grito rouco troou nas arcas do peito, como o frêmito da sucuri na profundeza do rio.
— A raiva de Irapuã não pode mais ouvir-te, velho pajé! Caia ela sobre ti, se ousas subtrair o estrangeiro à vingança dos tabajaras.
O velho Andira, irmão do pajé, entrou na cabana; trazia no punho o terrível tacape; e nos olhos uma raiva ainda mais terrível.
— O morcego vem te chupar o sangue, se é que tens sangue e não mel nas veias, tu que ameaças em sua cabana o velho pajé.
Araquém afastou o irmão:
— Paz e silêncio, Andira.
O pajé desenvolvera a alta e magra estatura, como a caninana assanhada, que se enrista sobre a cauda, para afrontar a vítima em face. As rugas afundaram, e, repuxando as peles engelhadas, esbugalharam os dentes alvos e afilados:
— Ousa um passo mais, e as iras de Tupã te esmagarão sob o peso desta mão seca e mirrada!
— Neste momento, Tupã não é contigo! replicou o chefe.
O pajé riu; e o seu riso sinistro reboou pelo espaço como o regougo da ariranha.
— Ouve seu trovão, e treme em teu seio, guerreiro, como a terra em sua profundeza.
Araquém proferindo essa palavra terrível avançou até o meio da cabana; ali ergueu a grande pedra e calcou o pé com força no chão: súbito, abriu-se a terra. Do antro profundo saiu um medonho gemido, que parecia arrancado das entranhas do rochedo.
Irapuã não tremeu, nem enfiou de susto; mas sentiu turvar-se a luz nos olhos, e a voz nos lábios.
— O senhor do trovão é por ti; o senhor da guerra, será por Irapuã.
O torvo guerreiro deixou a cabana; em pouco seu grande vulto mergulhou nas sombras do crepúsculo.
O pajé e seu irmão travaram a prática na porta da cabana.
Martim, ainda surpreso do que vira, não tirava os olhos da funda cava, que a planta do velho pajé abrira no chão da cabana. Um surdo rumor, como o eco das ondas quebrando nas praias, ruidava ali.
O guerreiro cristão cismava; ele não podia crer que o deus dos tabajaras desse ao seu sacerdote tamanho poder.
Araquém, percebendo o que passava n'alma do estrangeiro, acendeu o cachimbo e travou do maracá:
— É tempo de aplacar as iras de Tupã, e calar a voz do trovão.
Disse e partiu da cabana.
Iracema achegou-se então do mancebo; levava os lábios em riso, os olhos em júbilo:
— O coração de Iracema está como o abati n'água do rio. Ninguém fará mal ao guerreiro branco na cabana de Araquém.
— Arreda-te do inimigo, virgem dos tabajaras, respondeu o estrangeiro com aspereza de voz.
Voltando brusco para o lado oposto, furtou o semblante aos olhos ternos e queixosos da virgem.
— Que fez Iracema, para que o guerreiro branco desvie seus olhos dela, como se fora o verme da terra?
As falas da virgem ressoaram docemente no coração de Martim. Assim ressoam os murmúrios da aragem nas frondes da palmeira. O mancebo sentiu raiva de si, e pena dela:
— Não ouves tu, virgem formosa? exclamou ele apontando para o antro fremente.
— É a voz de Tupã!
— Teu deus falou pela boca do pajé: "Se a virgem de Tupã abandonar ao estrangeiro a flor de seu corpo, ele morrerá!..."
Iracema pendeu a fronte abatida:
— Não é voz de Tupã que ouve teu coração, guerreiro de longes terras, é o canto da virgem branca, que te chama!
O rumor estranho que saía das profundezas da terra apagou-se de repente: fez-se na cabana tão grande silêncio que ouvia-se pulsar o sangue na artéria do guerreiro, e tremer o suspiro no lábio da virgem.
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Iracema - José de Alencar
AléatoireIracema, a virgem tabajara consagrada a Tupã, apaixona-se por Martim, guerreiro branco, inimigo de seu povo. Por esse amor abandona a tribo, tornando-se sua esposa. Ao perceber, mais tarde, que Martim sente saudades de sua terra e talvez de alguma m...