A chuva acariciava a janela com mãos de silêncio, mas Beatriz nem percebia. Sentada no sofá de seu apartamento, pesquisava dicas de decoração no notebook, tentando desfazer-se do tédio que a envolvia há nem sabe-se quantos anos. Em sua busca virtual encontrou o anúncio de um quadro antigo, de tecido bordado. Assim que ela fez, involuntariamente, analogia entre o quadro e um mapa, recordou daquela manhã arrastada que passara, durante a infância, na casa de uma tia. Fechou o computador. Foi até a janela atentar à chuva e chamar as lembranças.
Naquela ocasião, Bia observava a rua sem olhar para nada. O tédio pesava sobre si. Abraçava forte o coelho de pelúcia, se sentia angustiada com a demora do estio. Se ao menos estivesse em casa teria mais com o que brincar. A casa da tia era chata.
Tudo era tedioso: o quadro em tecido bordado, as fotos antigas, um tanto assustadoras, os móveis sérios, esculpidos em madeira de lei, todas aquelas plantas. Se bem que o grande volume de samambaias da varanda bem poderia ser, aos seus olhos de menina, uma extensa floresta cerrada...
Bia encostou o rosto na porta grande de vidro, analisando todo aquele verde, os pingos que escorriam suavemente por sobre as folhas. Virou-se para o maior quadro da sala, um bordado de forma abstrata, com várias cores opacas, e transformou-o em um mapa. Agora sua tarde era uma viagem expedicionária às florestas da varanda. Conversou com os antigos retratos, outrora horripilantes, como se fossem seus superiores - os mentores da grande aventura que se aproximava. Abraçou o coelhinho de pelúcia prometendo um breve retorno, lhe deu um beijinho e partiu rumo à jornada.
Abriu bem devagar a porta de correr, espiou atentamente todos os detalhes do mundo mágico da varanda e se embrenhou na mata de samambaias. Procurava por tesouros, como a latinha de balas em que a tia guardava alguns botões para costura e que não encontrava há tanto tempo. Encontrava preciosidades, como uma correntinha que teria adornado o pulso de alguma princesa, em sua imaginação. Tudo era tão instigante quanto confortável em sua brincadeira.
De repente avistou um gato. Era cinza-tigrado, bem grande. Grande o suficiente para lembrar um felino selvagem. Ficaram os dois se observando, até se sentirem à vontade um com o outro. O gato lambia as mãos. A menina sorria. Estava tão feliz que não viu que a chuva já havia parado de cair.
Repassadas as memórias, naquele momento Beatriz percebeu o instinto inato do ser humano de transformar o negativo em emocionante, compreendeu o quanto a sociedade o domestica para que tenha a visão mais o limitada possível.
A lágrima de Beatriz, que quis descer, esbarrou no sorriso de Bia. Sua vida nunca mais tornou a ser a mesma.