Olhou a mãe uma ultima vez antes de sair. A visão de seus cabelos sujos espalhados pelo travesseiro lhe incomodava mais que as olheiras profundas abaixo dos olhos, mais que os ossos pontudos por baixo da pele fina, ou que o mau cheiro resultado de dias sem tomar banho.
- Tchau, mãe. Tô indo pra aula - resmungou pra si mesma, pois sabia que a mãe dormia profundamente e não a escutava. A mãe nunca a escutava. A depressão lhe tomara dos filhos há muito tempo.
Passou pela cozinha e tomou seu café da manhã: um copo d'água não muito gelado com duas pílulas para aliviar as dores e três de vitaminas diferentes, pegou a bolsa, olhou-se uma ultima vez no espelho da sala e conferiu sua maquiagem impecável, os cabelos negros e longos emolduravam seu rosto branco, destacando as bochecas rosadas e os olhos verdes. Respirou fundo e encolheu a barriga, concetrando-se em corrigir a postura e disfarçar as gordurinhas abdominais. Ensaiou um Gran-Plié e deu um sorriso forçado para si mesma. Ouviu a buzina insistente e soube que seu irmão a estava esperando.
Fechou a porta sem olhar para trás, e correu saltitante e sorridente em direção ao carro estacionado à frente da casa.
- E ai, maninho? - disse, estalando um beijo molhado na bochecha de Marco - não dormiu em casa de novo?
- Tive que resolver umas tretas - explicou, por cima de um bocejo. As olheiras escuras abaixo dos olhos verdes indicavam que passara a noite em claro.
- Vai entrar na aula?
- Nada, a galera vai ficar lá no bar do Alemão, vou colar por lá e esperar a hora da saída pra trotar os bixos.
Baby mordeu o lábio em apreensão. Marco ia começar a beber já pela manhã, e com certeza seguiria esse ritmo por todo o ano, até repetir de série mais uma vez.
- ok - assentiu, contrariada, e não falou mais nada por todo o percurso.
Marco estacionou na porta do Alemão, e buzinou para avisar os amigos de sua chegada.
- Você se incomoda de andar até a escola, bailarina? - Marco perguntou, já descendo do carro.
- Não, tudo bem - resmungou. Era sempre a mesma coisa.
- Boa aula. - disse, dando-lhe um beijo na testa - Vou te esperar aqui, na hora saída - e entrou no bar, indo em direção à seus amigos.
- Baby - Chamou Alemão, o dono do bar, com um sorriso afável - Linda como sempre!
- Oi, tio - Baby agarrou Alemão pelo pescoço e lhe deu um beijo na testa, por cima do balcão do bar. - Quando sair da aula volto aqui pra botar o papo em dia! - deu um tchauzinho de longe para os amigos do irmão e subiu a rua correndo em direção à escola.
A única família real de Baby era seu irmão, Marco. Sua mãe sofria de depressão há tanto tempo que sequer se lembrava de um tempo em que tinha uma mãe de verdade. Desde muito pequena aprendera a se virar sozinha. Seu pai, policial, falecera quando ainda era um bebê, e só o conhecia por fotos. Foi baleado por um bandido ao invadir uma favela. Era um herói, a mãe lhe contara. Foi baleado enquanto vendia armas para traficantes. Era um safado, um cuzão alcoólatra e abusivo que batia na mulher e no filho, e sua morte era uma bênção, Marco lhe contara... Dependendo de seu humor, acreditava em uma história ou na outra.
Sua carência por uma família a fazia adotar tios e tias de todos os tipos, por onde andava. Seu jeito meigo e sua aparência frágil fazia com que ninguém pudesse resistir ao impulso de cuidar dela, e Baby aceitava todo carinho de bom grado, mesmo que no fundo fosse dura como uma pedra, calejada da vida. Era fácil fazer com que todos a amassem, e se aproveitava disso ao máximo.
Parou no início da praça e respirou fundo ao encarar os portões de ferro da escola. Era seu segundo ano ali e dedicava-se ao máximo para não ter que ficar ali um dia mais que o necessário. Queria se livrar logo da escola para poder seguir sua vida, profissionalizar-se como bailarina e viajar o mundo com uma companhia de ballet. Não tinha feito muitos amigos por ali, e andava sempre com a turma do irmão. Pensava nos olhares tortos que as meninas de sua sala lhe lançavam quando o percebeu, parado há alguns passos ao lado. Ele tinha os cabelos longos presos em um semi-rabo de cavalo de forma desleixada, os ombros eram largos e o nariz reto, usava calças skinny e tênis vans. Podia ver um pedaço da cueca azul por baixo da camiseta do uniforme. "Hm, gatinho na área", Baby pensou. Respirou fundo, varrendo qualquer pensamento negativo de sua cabeça, e fixou seu melhor sorriso no rosto, aproximando-se. Olhou de relance para a garota loira que o acompanhava. O sinal tocou, estridente, e o garoto passou o braço pelo pescoço da loira, e murmou algo que não pode ouvir.
- Bixos? - perguntou, sem tirar o sorriso do rosto. Percebeu que a garota ficou tensa, mas ele apenas a olhou com uma expresão meio entediada.
- É, parece que sim - ele disse, e sorriu timidamente, como se só então tivesse reparado na beleza de Baby - Você também?
- Não - não deixou de reparar que ele soltou o pescoço da loira e voltou o corpo em sua direção - tô no segundo. Sou Bárbara - estendeu a mão para o garoto - mas todos me chamam de Baby.
- Sou Rick - ele pegou em sua mão com firmeza - E ela é a Flor.
- Oi - a garota murmurou, sorrindo timidamente.
- Muito prazer - Baby respondeu, com entusiasmo, e enroscou seu braço no de Rick - Vem! Eu mostro a escola pra vocês!