Flor

11 1 0
                                    

O sol alaranjado daquela manhã de fevereiro invadiu o quarto pela fresta da cortina, formando um raio de luz cheio de pequenas partículas de pó flutuante. Flor abriu os olhos e quase achou aquilo bonito, mas o calor insuportável de fevereiro fazia seus cabelos grudarem no suor do pescoço e levantou irritada. Chutou o ursinho de pelúcia jogado ao pé da cama, abriu o guarda-roupa e pegou de qualquer jeito a camiseta que seria seu novo uniforme escolar, do chão recolheu uma calça jeans velha que usaria todos os dias se a mãe não a proibisse. Achou uma calcinha e um sutiã sem pensar em combinações e rumou para o banheiro.

O banho foi rápido e quase frio, lavou os cabelos sem muito cuidado, arrancando alguns fios. Escovou os dentes nua, quase sem olhar-se no espelho - sua magreza a incomodava. Sua aparência era a mesma desde sempre: os cabelos loiros cor-de-areia e encaracolados, a sobrancelha fina quase invisível, os olhos o nariz arrebitado cheio de sardas e os lábios pequenos, o superior levemente mais cheio que o inferior. Sempre essa cara de criança mimada, não fossem as olheiras escuras debaixo dos olhos azuis. Na verdade, a única coisa que Flor gostava no próprio rosto eram as olheiras que a mãe tanto criticava, justamente por ser a única coisa que lhe diferenciava de sua progenitora, o único detalhe que transparecia a sua própria personalidade.

Vestida, rumou para a cozinha, pegou uma maçã, passou pela sala pegando a mochila que havia largado ao lado do sofá, sacou a chave do bolso e abria a porta quando sua mãe lhe chamou a atenção.

- Flor! Ia embora sem nem me dar tchau? - o tom de voz não transmitia qualquer sentimento específico. Era quase maquinal.

- Tchau, mãe, tô indo pra aula. Fica tranquila, eu decorei o caminho... - contrafeita, esboçou um sorrisinho forçado.

- E vai assim com essa cara? Não passa nem um blush? Não seca o cabelo? - Marieta media a filha de cima a baixo, irritada.

- Tô atrasada, mãe! Fui! - revirando os olhos, Flor virou a chave na maçaneta, saiu e fechou a porta rapidamente, ainda ouvindo os resmungos da mãe. Era sempre a mesma coisa, afinal.

Desde sempre os mesmos conflitos exaustivos e irritantes. Flor detestava usar maquiagem, achava seu cabelo bom o suficiente ao natural... Não tinha tempo – e nem queria ter – para cosméticos, chapinha, e todo aquele arsenal de futilidades com que a mãe se preocupava. As maiores discussões eram sempre acerca das olheiras: Marieta insistia para a filha usar uma base ou corretivo, para ‘disfarçar a cara de zumbi’.

As roupas eram outro tópico delicado. A mãe tentava convencer Flor a usar todas aquelas saias, blusinhas cor-de-rosa, salto alto e bijuterias que comprava, e Flor se sentia bastante confortável dentro do que considerava estiloso (não era como se ela não se importasse com sua aparência, apenas não gostava do padrão que a mãe tentava lhe impor): calças jeans ou de sarja, sua coleção de tênis e botas militares, e as camisetas de suas bandas preferidas. Até usava um acessório: os óculos escuros, bem ao estilo dos anos 80, que colocou assim que saiu de casa.

Fones de ouvido a postos, deu o play no iPod e cantarolou baixo os primeiros acordes de "Paint the Old Streets Black". Caminhou até a casa de Rick, talvez uns 10 minutos de caminhada, controlando-se para não vomitar de nervosismo, usando músicas barulhentas como distração.

Tinha sorte de morar em um dos últimos bairros arborizados de São Paulo, e o caminho para a nova escola não era de todo feio. Muitos prédios estavam sendo erguidos onde antes haviam casinhas antigas e coloridas, é verdade, mas as árvores rentes à calçada eram mantidas e razoavelmente bem cuidadas. Uma das ruas pelas quais passava ainda era pavimentada com paralelepípedos, as pequenas ervas brotando por entre as pedras.

 Flor dava um valor infinito a esses pequenos detalhes. Aos 14 anos e em seu primeiro dia de aula do ensino médio, era uma conquista poder ir a pé sozinha para a escola. Até o ano anterior seus pais sempre lhe levavam e buscavam na escola de carro, nunca tivera a oportunidade de observar as ruas de sua cidade com atenção.  Sempre vira pela TV ou em filmes adolescentes independentes que conheciam sua cidade, que conseguiam chegar em qualquer lugar por transporte público, e invejava essas pequenas liberdades, não tão pequenas para quem cresceu num lar super-protetor. Filha única, menina, os pais sempre tentavam lhe incutir a ideia de que a cidade era um monstro gigantesco, prestes a engoli-la. Tantas proibições só a deixaram mais curiosa e ávida por um estilo de vida livre e independente. E agora, caminhando só pelas ruas de seu bairro, pensava que nenhuma cidade é um monstro mais perigoso que adolescentes na escola. O frio em sua barriga aumentou com esse pensamento, mas nesse momento cruzava a rua de Rick, e avistou-o na calçada, esperando.

Rick era filho de Gabriela, melhor amiga de Lúcia, mãe de Flor, portanto, seu amigo desde sempre. Seu melhor amigo, na verdade. Sempre se deram bem, e faziam tudo juntos, quase como se fossem irmãos gêmeos, até por compartilharem problemas familiares muito parecidos. O rosto familiar lhe deu certo conforto: os cabelos escuros sempre bagunçados, os olhos castanhos estavam escondidos atrás de óculos idênticos aos de Flor, mas ela sabia que ainda estariam inchados de sono, a camiseta detestável do uniforme não combinando nada com seu recém-adotado estilo calça preta skinny+vans de cano alto – recentemente aprendera a andar de skate. Ou talvez seu estilo era o que destoava da camiseta e da temperatura. Não que Flor estivesse muito diferente.

- Hey, e ai! – Flor cumprimentou, parando no meio fio e esperando que ele se engajasse na caminhada.

- Beleza? Esse uniforme é uma merda, hein – Rick resmungou com voz de quem ainda não tinha acordado direito. Provavelmente não tinha dormido nada pra virar a noite jogando vídeo game.

- Segura esse mau-humor ai, cara. O dia ainda nem começou – Flor estava mais animada. Seu amigo era um apoio em momentos difíceis, sempre. Botou um dos fones no ouvido de Rick – se liga nesse som, que pesado.

Caminharam por mais dez minutos em silêncio, ouvindo música.

***

O prédio se erguia imponente em meio a praça. Uma pequena multidão uniformizada caminhava em pequenos grupos sorridentes e barulhentos e direção aos altos portões de ferro, guardados por duas 'tias' uniformizadas e sorridentes. Alguns alunos sentados no chão da praça conversando animadamente levantaram lentamente quando o som estridente do sinal da escola soou.

Flor e Rick pararam no início da praça, observando a movimentação à distância. Rick olhava ao redor com tédio, e Flor mordia o lábio nervosamente.

- Vamo nessa? - Rick perguntou, passando o braço pelo pescoço de Flor, como sempre fazia ao sentí-la tensa.

- unhum - ela resmungou, incerta de sua afirmativa.

Flor havia mudado de escola muitas vezes. O suficiente para saber que, quando se é tímida e insegura, crianças e adolescentes podem ser muito cruéis. Mas ter seu melhor amigo ao seu lado finalmente lhe dava certa confiança para tentar fazer novas amizades. 

Flores SelvagensOnde histórias criam vida. Descubra agora