Na manhã seguinte, quando abri os olhos, estava tão desnorteado que tive momentos de uma ignorância divina.
Não passaram de segundos. Menos que isso, talvez. Um espaço de tempo ínfimo no qual eu apenas encarei o sol espreitando preguiçoso entre as persianas ao lado da cama do hospital, formando padrões sobre os lençóis e esquentando meu rosto. Era uma sensação que abraçava e quase acariciava. Eu te disse uma vez o quanto apreciava as primeiras impressões de dias bons, porque nos faziam sentir o quão precioso é estar vivo, e foi em exato esse sentimento de entrega inerente à manhãs quentes e calmas que me salvou.
Se eu tivesse acordado pra dor que me atingiu como uma bola de demolição depois disso, acredito que estaria arruinado para sempre, Ash. Eu jamais seria capaz de rastejar para fora daquilo e enxergar qualquer coisa boa no mundo outra vez.
Eu gostaria de dizer que você não seria capaz de imaginar o quão horrível foi, mas apesar de eu saber que é impossível equalizar sofrimentos, lembro em determinado momento tive certeza de que você sentiu aquilo mais vezes que eu, em vida e nos suspiros finais. Eu sabia que você estava machucado e lidava com isso diariamente. Sempre me perguntei como seria estar por dentro da sua pele, em posse dos seus pensamentos e ser vítima da sua história. Eu até disse que gostaria de trocar de lugar com você, para que não tivesse que correr tanto perigo e sofrer tanta dor. Depois daquele dia, eu sei que se isso acontecesse eu seria incapaz de sobreviver por muito tempo. Eu sucumbiria à toda agonia, exatamente como fiz quando a realidade me alcançou naquela manhã.
Eu não queria ver ninguém, mas todo mundo entrou no quarto quando eu gritei. Acho que já estavam encostados na parede do lado de fora, aguardando a hora em que o sedativo deixaria de fazer efeito e me traria de volta pro mundo real.
Quando Ibé me tocou, queimou como ácido. Não eram suas mãos.
Quando Sing tentou pedir para que eu me acalmasse, soou como uma sirene. Não era sua voz.
As enfermeiras entraram com uma seringa contendo calmantes em riste, e eu quis me levantar e correr, porque nenhuma delas era você, e nunca mais seria você. Eu era incapaz de ficar em pé ou deitado, de olhos abertos ou fechados em qualquer canto do quarto ou de Nova Iorque, pois nada fazia sentido. Talvez tenha sido isso o pior de tudo: a sensação corrosiva de já não estar confortável no mundo, de não ter encaixe nele.
É engraçado o quanto a relatividade se contorce e molda contrária à necessidade de quem a percebe. As horas daquele dia foram sôfregas, e havia mil anos em cada uma. Cada batida do meu coração era uma ressonância do próprio espaço-tempo, que chafurdava as memórias mais inocentes e sagradas que eu tinha de você e fazia parecer que não tinham acontecido há semanas e sim naquele mesmo momento. Eu conseguia sentir tudo em toda parte, mas estava preso no complexo de saber que era apenas uma consequência do presente. Foi sufocante, aterrador. Eu jamais terei conhecimento de palavras o suficiente, em inglês ou japonês, para encontrar uma que defina o que eu vivi ali.
No final, apenas Sing ficou, apesar dos médicos tê-lo também solicitado que saísse. Havia algo de desespero e culpa nos olhos dele, me encarando angustiado do outro lado do cômodo, que quase resgatou uma preocupação passiva do turbilhão que implodia meu peito. Só me observou revirar na cama como se estivesse em chamas, ser obrigado a comer qualquer coisa e em seguida colocar tudo pra fora, e lutar contra o efeito sonífero dos analgésicos porque eu não suportava a ideia de dormir para então acordar e ter que reaprender sobre aquela dor. Ele apenas ficou lá, perdido nos próprios sentimentos de luto, diferentes e mais controlados que os meus, por já estarem tão acostumados a perda.
À noite, se aproximou. Eu estava completamente obliterado de calmantes e remédios para dor e sequer conseguia mover minha cabeça da poça que minhas lágrimas haviam criado.
Sing sentou ao meu lado, inclinou-se sobre mim, e chorou no meu ombro. Mais do que nunca, ele parecia ter só os quinze anos que tinha, mesmo que o peso em seus ombros eu não fosse capaz de entender mesmo que vivesse um século. Com quinze anos, eu ganhei o primeiro campeonato de salto à distância do distrito de Izumo, Ash. Eu nunca tinha visto uma arma pessoalmente ou imaginado que realmente seguraria uma algum dia. Você vê, como eu disse: é impossível equalizar sofrimentos.
Dias depois, na cerimônia de cremação que eu me recusei a assistir, perguntaram se eu queria ficar com alguma coisa sua; do que você estava usando quando te encontraram, no caso. Eu não quis, não tive coragem. Sing, no entanto, pediu para ficar com seus óculos. Ele os mantém no guarda-roupa do quarto dele na minha casa, e houve noites insones em que eu quase quis vê-los outra vez, mas nunca consegui passar da porta.
Nós levamos suas cinzas àquele píer no qual você me contou sobre o leopardo de Salinger. Daquele ponto, o panorama de Nova Iorque é sublime. Max até ponderou se o melhor não seria fazê-lo em Nova Jersei, mas eu sabia que apesar dos pesares, você amava essa cidade e gostaria de permanecer aqui. Nova Iorque é a eferverscência que custa dores intensas, mas que ao mesmo tempo as compreende melhor que qualquer outro lugar.
Eu nunca disse em voz alta que eu te amo, mas nunca me senti culpado por isso. Eu sei que você sabia da maneira mais sincera que alguém pode ser ciente de amor. Tudo o que era, e sou, fluía e flui pra você, onde quer que você esteja. Aqueles dias de agonia que me aterrorizaram — e que ainda me assombram em alguns momentos —, eu desejo nunca ter precisado enfrentar, mas se cada passo que demos estava predestinado a chegar àquele mesmo ponto da caminhada, eu os aceito de bom grado. Não há pena suficiente nesse mundo que valha a honra de ter conhecido e apreciado tão ternamente uma alma como a sua, Ash. É claro que eu preferia e trocaria tudo pela sua presença agora, mas não é como se alguma vez eu não tenha sentido ela comigo em toda parte.
Eu não vou negar que houve momentos em que estive tão triste e impotente que pensei em desistir de tudo, mas eles não duravam muito tempo. Mesmo a melancolia da sua ausência é encorajadora e revolucionária para mim. Se eu não estiver mais aqui, não poderei mais lembrar de você, e o mundo perderia uma testemunha do quanto você era bom, e isso é inaceitável. O universo precisa de todas as provas possíveis de que você existiu e iluminou a vida de alguém com a luz de mil sóis, mesmo que não acreditasse nisso.
Ash, meu amigo, coração dos corações, acho que ao contrário do que eu afirmei naquele dia, você que vai ter que me esperar, mas não para sempre. Espero que eu saiba aproveitar o tempo que o meu destino planejou destrinchando de cada momento a mesma beleza que eu encontrava nos seus olhos, e epifanias que espero aproveitar ao seu lado em outras vidas.
Eu te amo tanto que não consigo realmente dizer adeus. Desculpa.
Eiji.
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cor cordium 》asheiji
FanfictionAlgum tempo depois, Eiji escreve uma carta na tentativa de explicar como se sentiu após a pior notícia que recebera na vida - mas ele sabe que todas as palavras do mundo ainda não seriam o suficiente.