A Faxineira

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Seus estudos davam conta da leitura nos rótulos das embalagens, mas a maldita palavra estrangeira lhe fazia balbuciar enquanto mordia os lábios por não ser capaz de fazer igual a artista televisão que sorria no comercial do xampu que gostava de usar. O cheiro era tão bom, sua patroa usava desse também, e desde que ganhara um no seu último aniversário, criara afeição por ter aquele cheiro em seus cachos.

Nunca pode reclamar de sua patroa, sempre lhe dera tudo, sempre que precisou ficar em casa cuidando de um filho doente foi atendida, inclusive a patroa providenciava alguns remédios que o posto de saúde nunca fornece, sabia que anjos existiam por sempre limpar a prataria e os cristais enquanto era observada por uma tapeçaria na parede com várias entidades angelicais e que se misturavam à sua patroa quando esta chegava para almoçar.

Fora mãe solteira desde que os gêmeos nasceram e "expulsaram" o pai de casa com choros intermináveis, o homem não encontrou outra saída a não ser sumir no mundo e procurar outra vida em lugar que ela nunca soube, e também depois de ter enfrentado a criação de duas crianças com a ajuda de alguns vizinhos e depois em ter encontrado emprego em uma casa onde era tão bem tratada por todos, não queria mais ver o homem que lhe abandonara, não sentia nada mais por ele, talvez sentisse ódio, mas nem se lembrava mais.

Dormia no emprego e só ia pra casa nos finais de semana, seus filhos agora com 15 anos sabiam se cuidar, sempre foram mais espertos que o normal e aprenderam desde cedo a valorizarem cada coisa que tinham, e eram tão unidos que a mãe nem acreditou quando ao tentar educar um deles com um tapa o outro também se ofereceu a apanhar pois tinha falhado por igual, ela nunca esqueceu isso, o abraço e o choro em trio perdurou a noite inteira e só acabou quando todos dormiram.

Sua casa era modesta, pagava um aluguel simbólico, depois que começara a trabalhar deixou o único quarto para os filhos e dormia na sala, mas ainda assim, apreciava cada momento que passava ali, guardava no peito toda sua vontade de oferecer algo melhor, pois sabia que seus filhos teriam um futuro bem melhor.

Sua rotina era bem monótona, na segunda de manhã saía de casa, tinha uma van escolar que trazia as crianças pra escola na cidade, então ela ia até o emprego nessa van, pois o motorista morava na rua de trás e foi ele mesmo quem ofereceu uma vez quando a viu andando sozinha na estrada de barro. Passava a semana lavando, passando, e arrumando a casa, ela dava conta, mas sempre tinha ajuda da outra empregada que era mais uma cozinheira, então sabiam dividir as tarefas. Tornaram-se amigas, afinal que inferno não seria passar a semana toda ao lado de uma inimiga. Embora nunca faltasse trabalho, sempre tinha algo a ser limpo, a patroa era um doce de pessoa, mas tinha uma terrível mania de limpeza, e ela fazia de tudo para que não recebesse nenhuma reclamação.

Sua vida era boa, já estivera pior, pensava isso enquanto acordava para mais um dia, ligou o rádio e só escutou uma chiadeira, mudou de estação, mas todas estavam fora do ar, procurou por algum tempo e decidiu que podia estar quebrado, e sua decisão não poderia estar mais certa, se não fosse o fato de que subitamente o aparelho começou a emitir sons estranhos e que pareciam as artistas das músicas que a patroa ouvia.

Mas percebeu que podia entender também, "isso é uma salvação" "não é uma invasão" "nós viemos salvar a todos" "não se preocupem, somos amigos".

Pensou que programa de rádio estranho era esse, então tentou sintonizar outra estação, mas todas transmitiam a mesma coisa, sempre as mesmas palavras, na verdade, era como se falassem todas as palavras em um único momento, ela não sabia explicar, se aquilo fosse um sonho estaria no mais real e ao mesmo tempo mas louco sono.

Desligou o aparelho, um silêncio incomum pairava o ar, não se ouvia barulhos de pássaros, ou insetos ou qualquer outro barulho animal, só o vento, o vento desfolhava as árvores e uivava forte, parecia que um avião estava passando por cima da casa, olhou pela janela do quarto e viu que o sol mal tinha saído, percebeu que não estava dormindo, quis ligar para seus filhos, o celular nem mesmo ligava, não entendeu como pode ter quebrado logo em um momento assim.

Saiu de seu quarto e foi encontrar a outra empregada que parecia estar desmaiada na cozinha, seu corpo tremia de uma forma que o susto foi inevitável, logo estava chamando pela patroa que parecia não ouvir nada e continuava presa no quarto sem dar o menor sinal que estava ali.

O desespero também foi inevitável, o rádio parecia ter ligado sozinho, pois as vozes chegava em seus ouvidos, o vento lá fora castigava as árvores. As vozes pareciam aumentar cada vez mais, às vezes entendia e em outras não fazia ideia do que eram aqueles sussurros que mais pareciam grunhido.

De uma forma que não sabia explicar, ao entrar novamente na cozinha, viu sua amiga sentada e também podia ouvir os lamentos dela, podia ver o que acontecera outros dias, podia lembrar de coisas que nunca vivenciou, ouvia a amiga gritar e quando olhava pra ela, os lábios estavam cerrados. Pensou estar enlouquecendo. Correu novamente ao quarto da patroa e agora podia ouvir também os seus gritos. "NÃO QUERO! NÃO!"

Podia ver a patroa mais jovem se olhando no espelho enquanto se maquiava e parecia estar vestida de noiva, mas via tudo isso em sua mente, não ouvia nada a não ser as vozes que nunca acabavam sempre lembrando sobre não ser uma invasão, sobre estar sendo salva, sobre os amigos que o mundo sempre precisou.

Estava louca, pensou em rezar, os anjos na parede pareciam estar assustados, os gritos da patroa e amiga ficaram cada vez mais abafados até desaparecerem por completo. Olhou o relógio e já era 7h, não fazia ideia de como isso aconteceu nesse tempo. Estava louca, não poderia mais sustentar os filhos, quis chorar, mas não veio nenhuma lágrima. Sentiu uma solidão que há muito tempo não sentia. O silêncio completo lhe atordoou, andava pela casa se apoiando nas paredes, sua cabeça doía. Tinha lembranças que não eram dela, via a si mesmo com outros olhos.

As vozes voltaram, e aos poucos tornaram-se uma voz apenas, parecia ser a voz do pai, ela podia lembrar, era seu pai que falava, mas depois não era mais, era sua mãe, depois a voz de cada filho, depois a voz da patroa, cada voz falava uma frase. "volte ao trabalho" "está tudo bem" "pode ficar tranquila" "somos a salvação" "arrume a bagunça" "limpe o quarto". "Não é uma invasão, é uma salvação" "Não é uma invasão, é uma salvação" "Não é uma invasão, é uma salvação"

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⏰ Última atualização: Apr 11, 2019 ⏰

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