1. Amanhecer rubro

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Antes, era um nascer do sol marcado pelo pontilhar de nuvens fugidias, indolentes e belas no dourado do lusco fusco. Qual torvelinhos de um rio no céu, elas caminhavam em direção ao mar, não tão distante, através das montanhas que sobem ao firmamento com suas costas longas, salpicadas das arbustivas lavandas e dentes de leão. No alto, para acompanhar as nuvens, neve. Logo aos pés da montanha, como um tapete reverenciado, uma floresta de pinheiros longos e marcados por eras de existência, leves pela ausência da neve -- ainda que o outono não tarda em suas geadas.

Porém a campina logo adiante, semi congelada pela fina camada de água do sereno noturno, é um oceano de fúria.

Do coração das montanhas, algo deturpa a terra; das profundezas dos céus e estrelas, algo tenta engolir o sol. As águas fervilham.

Antes, um belo nascer do sol. Mas isso se foi quando eles todos eram pequenos... eles? Os homens que ali estão.

Exércitos inteiros.

Uma aliança desesperadas de povos e tribos, nações e impérios, guerreiros, camponeses, mulheres e idosos. Todos vieram lutar... contra os outros.

Contra o exército dos loucos.

Antes não era um exército, mas apenas alguns doentes: algo como a raiva, como um tipo de praga que aflige os incautos e indecentes. Ninguém se importava com os grasnados roucos e suas mordidas nos calcanhares dos viajantes.

Então os viajantes também adoeceram.

E depois, todos aqueles que eles morderam ou machucaram.

Até Reis e príncipes caíram sob a febre da insanidade.

Então eles pioraram.... sua loucura cresceu. Eles usaram armas... e deram à luz para coisas estranhas, um mal que ninguém sabia explicar. Feiticeiros, xamãs e clérigos de todos os reinos vieram enfrentá-los e disseram que não havia nem mesmo um espírito ali, muito menos um deus maléfico manipulando fantoches.

Então o que são eles?

Eles são loucos... e sem alma. Um exército desalmado.

E homens sem alma não tem medo de morrer.


- Eles espumam pela boca... - Syracuse treme de medo. - Murmuram e rosnam como animais...

Ao seu lado, fileiras e fileiras de homens se preparam para atacar o flanco da montanha infestada de insanos. Os cabelos louros do jovem caem soltos afora seu pescoço, sem a prisão do bacinete prateado o jovem fulgura junto de seu povo, os burgueses de Irafora.

- Mantenha. - Celeres afirma, bastante impaciente. - O que tiver de ser, será.

Celeres é o que se chama de "Homem Castanho", alguém nascido entre matas e territórios sem povo próprio ou nação -- ele é do mundo e não tem um Rei. Seus olhos castanhos fitam o inimigo próximo com receio, mas coragem; seu cabelo em tranças é uma mistura de sujeira e sangue de dias e noites de escaramuças nas montanhas. Muito diferente da bela armadura de Syracuse, Celeres não usa muita coisa além de peças de couro e peles de cabra cobrindo a cintura e pernas. Os poucos trapos azuis que escapam pelos braços deixam à mostra a pele tatuada do corpo --- os símbolos dos selvagens. Em suas mãos, descansando no solo, uma espada montante de corpo longo, gume tortuoso e runas encantadas por xamãs sombrios, uma arma de um selvagem.

Syracuse cospe no chão... e o comandante do Regimento Bargause cavalga pouco à frente, os penachos dourados esvoaçando ao vento.

- Homens da vasta Renânia! Fogo e morte ao inimigo! Lutem pelo seu povo, lutem pela vida de suas famílias! O PARAÍSO NOS AGUARDA! - O Paladino grita sob a viseira aberta do bacinete.

Muitos dos homens se enervam, erguem as armas e os mosquetes, gritam, berram, salivam -- tão raivosos quanto os monstros com raiva. Syracuse é um deles. Celeres não.

- PARA A RUÍNA E O FIM DO MUNDO! AVANTE, FILHOS DA TERRA!

Tambores ecoam, trombetas soam, ordens gritam. A marcha faz o solo tremer, os fuzileiros no corpo central, à frente, armas prontas e baionetas ainda guardadas. Pelos flancos, os regimentos da velha infantaria mal equipada -- espadas, lanças e machados, as milícias e armas antigas -- avançam com menor ímpeto, sabem que tem menos chance de sobreviverem.

A nobreza e os grandes clérigos ficam na retaguarda, ostentando os bandeirões de cada conglomerado, de cada povo. Tantas ordens em tantos idiomas diferentes são berradas que é fácil se confundir.

Do outro lado....

Rugidos em uníssono. Homens, mulheres, crianças, velhos, todos com bolotas em forma de cruz nos olhos, caminhando com uma disciplina feral. Unhas longas, pele vermelha, pouco ou nenhum pelo -- de feras, apenas a aparência e os sons. Seus modos agressivos e calculados tomaram reinos inteiros em poucos anos.

O sol é tomado pela sombra misteriosa... o amanhecer torna-se vermelho, escuro.

- AVANTE!!

- Linha de conflito, preparar! - Os comandantes de batalhão gritam.

Os fuzileiros detém a passada e erguem os mosquetes. A infantaria de contato segura o passo e ergue as armas, aguardando instruções.

Os insanos se aproximam, com escudos em riste, rugindo, berrando.

- FOGO!!

Milhares de clarões e estampidos, as montanhas rebatem o barulho do trovoar das armas e fazem os olhos piscarem e os corações se acelerarem, os homens sentem o calor da pólvora queimando na caçoleta das culatras.

E as nuvens de sangue e pedaços de insanos caem ao chão.

- Começou, mais uma vez. - Celeres comenta, sombrio.

Ele apruma a espada... e um enorme grupo de insanos sai correndo da floresta, atraídos pelo som da batalha.

- Atraídos como bestas! - Syracuse grita.

- Bestas não flanqueiam. - Celeres afirma. - Bestas não tecem planos.

E a onda de insanos se aproxima correndo... as mãos tatuadas de Celeres apertam o punho da espada.

Passos de um passado com futuroOnde histórias criam vida. Descubra agora