Vovó

8 2 2
                                    


Já faziam cinco anos desde que o vovô morreu e a vovó estava naquele asilo. Sabíamos que ela mesma quem se colocara lá, mas já estava na hora de voltar para sua casa, e agora, toda a sua família estaria junta para cuidar e dar a atenção que vovó precisava.

No rádio do carro, tocava Beatles, mamãe no banco do carona conversando pelo telefone com a tia Kelly, papai no volante cantando "Ticket to Ride" aos plenos pulmões como se estivesse em um show, mamãe brigava com ele pela centésima vez para que diminuísse o volume. No banco de trás, vovó olhava pela janela as árvores que perdiam a cor nesse começo de outono, eu a observava e me perguntava por que ela desistiu de sua casa para ficar sozinha em um asilo. Lembro que ela resistiu muito, não queria voltar. Não sabia como iniciar uma conversa com ela sem que conte aquelas milhões de histórias de contos de fada que ela insiste em dizer que já viu. Vovó toma tantos remédios para a cabeça, que todos achamos que tenha ficado um pouco toleima.

A próxima esquina era a rua da casa. Vovó parecia temer aquela mudança, mas não dizia nada. Paramos o carro em frente e tia Kelly estava nos esperando na porta junto com meu primo Collen.

-Como a senhora está, mãe? -Tia Kelly ajudou vovó a descer do carro e a estava levando para dentro da casa. Meus pais estavam tirando as malas do carro e me pediram para acompanhar o restante da família.

-A senhora quer subir para seu antigo quarto, mãe?

Vovó parecia distante de nós naquele momento, como se recordasse de algo que aconteceu a muito tempo naquele lugar.

-Mãe? - minha tia chamou novamente.

-Oh sim... Me levem ao meu quarto.

Subimos as antigas escadas da casa e fomos para o segundo andar. Na casa haviam três andares, o primeiro onde ficavam sala, cozinha e escritório, o segundo com três grandes quartos e o último andar com mais um quarto e uma quarto que vivia trancado. Sempre pensei que ali poderia ser o sótão, mas nunca sequer abriram para me deixar olhar.

Mamãe e minha tia vieram dias antes com uma equipe de faxina limpar aquele lugar. Fora deixado de lado por cinco anos e agora que irá receber bem mais moradores do que de costume, deveria estar impecável.

Abrimos a porta do quarto que costumava ser do vovô e da vovó, estava exatamente como era antes. As cortinas bege e pesadas que pareciam leves ao vento, a grande cama que ficava em frente a elas, o escuro guarda roupa do outro lado do quarto, uma pequena escrivaninha ao lado da cama e uma penteadeira que ao invés de conter inúmeros cosméticos, vovó guardava algo muito mais valioso: livros.

Minha paixão pela leitura começou por ela, já que vovô sempre achou livros que não fossem para estudos uma tolice de gente sonhadora. Eu me considero uma sonhadora, uma pessoa que imagina sempre uma história nova a cada dia. Mas sei que devo crescer, me tornar adulta e parar de ler esses contos de fadas que não levam ninguém a lugar algum. Eu preciso cuidar da vovó, ser a neta que ela merece que eu seja e ajudá-la a enfrentar o Alzheimer.

-Este não é o meu quarto - vovó vira para nós assustada.

-Vó, o quarto está igualzinho como a senhora o deixou. - disse meu primo meio sem saber o que falar.

-Aqui é o quarto dos meus pais. - provavelmente a doença estava piorando, vovó pensava que ainda morava com seus pais que morreram bem antes que eu pudesse conhecê-los.

Um pouco irritada pelo nosso "engano", ela saiu pela porta e subiu as escadas rumo ao terceiro andar. Tudo indicava que iria abrir a porta do quarto que antes era de seu irmão John e que agora seria meu e do meu primo. Porém, ela foi na direção contrária e entrou no quarto que antes vivia trancado. Meus olhos brilhavam de curiosidade. 

-Eu e Mary decidimos abrir esse antigo quarto e arrumá-lo já que a senhora só guardava coisas velhas nele. Deixamos como se ainda fosse 1930. - minha tia foi entrando e mamãe e papai já estavam dentro de casa.

Senti um pequeno formigamento na barriga, depois de anos vindo a casa de vovó, finalmente irei ver o que há dentro daquele quarto. Abri um pouco mais a porta e entrei. Uma grande janela lançava luz no quarto, abaixo dela um divã branco com algumas almofadas coloridas. A cama ficava na parede lateral, onde tinha um grande espaço com um baú e um tapete de pelo. A penteadeira parecia vinda de um quarto de princesa, o guarda roupa caberia todas as roupas da casa. Era simplesmente incrível. Como ninguém usa aquele quarto a anos e parece que não perdeu a graça e elegância?

-Está.... Idêntico ao quarto meu e dos meus irmãos. - vovó estava fascinada - Obrigada, querida. Por ter dado vida a esse lugar novamente. 

-Não precisa agradecer, mãe - Era a minha mãe quem falava agora, também estava no quarto. - Sabíamos que aqui deveria ser um lugar muito importante para a senhora e para o tio John, já que haviam muitas coisas antigas aqui.

-Oh, esse quarto era meu e dos meus irmãos. Lembro de ficar horas sentada naquele divã contando histórias sob a luz da lua para eles.

-Irmãos? - perguntei - A senhora só tem um irmão.

Um silêncio no lugar. Vovó olhava para fora da janela, como se tivesse alguém ali nos observando.

-Ele foi levado de mim. Levado dos meus pais por alguém cruel e sem sentimentos.

-Como a senhora pode ter outro irmão se o tio John nunca o mencionou para nós? - mamãe perguntava um pouco duvidosa sobre essa revelação.

-Bem... ou deve ser delírio meu. - suspirou vovó.

O clima estava um pouco pesado e ninguém comentava nada.

-Eu amei o seu quarto, vó. -disse passando a mão sobre a penteadeira.

-Estávamos pensando em dá-lo a você, Arya. -Mamãe passou a mão no meu cabelo.

-Achamos que aqui seria um ótimo quarto de uma adolescente entrando na fase adulta - foi a vez de papai de pronunciar.

-O que acha, mãe? - perguntou minha tia

Vovó fez silêncio olhando novamente para a janela. Quando virou, sua pele perdera a cor.

-Vó, o que aconteceu? - Collen a ajudou a se sentar naquele divã antigo.

-Acho.... ótimo que você fique aqui, querida. Não ficaria mais feliz.

Take me to NeverlandWhere stories live. Discover now