Vestido Vermelho

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Esta história que vou lhes contar, mamãe nos narrava à noite, à luz do lampião, enquanto debulhávamos milho e feijão. Ela sempre a mencionava, não para nos amedrontar ou nos fazer ficar em casa à noite e lhe obedecer. Ela nos recontava porque foi uma história que realmente aconteceu.

Em frente ao espelho, a moça rodopiava apreciando seu vestido vermelho. O contraste com sua pele era como leite derramado sobre carne de boi recém-abatido. Seu sorriso iluminava o ambiente e o rosto maltratado pelo sol do sertão. A festa de São José era a mais esperada e ela queria ser a mais bonita.

O batom vermelho estava à mão quando se lembrou do jantar. O cheiro de queimado invadiu lhe as narinas e ela correu a cozinha tentando salvar algo que seu marido pudesse comer.

– Aonde pensa que vai vestida assim, mulher? – O marido estava encostado no batente da porta dos fundos, sorrindo do susto que lhe pregara.

– A festa, oras! – Ela lhe sorriu de volta enquanto colocava seu jantar. – Esqueceu foi?

Ele colocou as mãos nos bolsos, caminhou até a mesa e quando se sentou, disse cabisbaixo:

– Não vamos à festa. Vou trabalhar esta noite.

O trabalho de vigia do marido, às vezes, deixava a moça sozinha à noite a lidar com os barulhos estranhos em volta da casa.

– Como assim não vamos à festa? – Ela lhe perguntou em tom de súplica. – Eu comprei até esse vestido para ser a mais bonita.

– Você está realmente bonita, mas não tem jeito. Eu vou trabalhar. Vai tirar a roupa. Só vim jantar. – Diante o olhar amargurado da moça, o marido continuou: – Na verdade, já estou atrasado.

– Posso ir com meu irmão e cunhada? – A moça ainda arriscou pedir.

– Se aquieta mulher! Sem mim você não vai!

A moça saiu triste para o quarto pensando porque cargas d'água o marido tinha que ir trabalhar à noite logo naquele dia.

Depois que ele saiu, ela foi fechar as portas como de costume, a lua cheia estava nascendo, iluminando todo o caminho da sua casa até a do seu irmão. Então, a moça tomou a decisão e saiu correndo como um gatuno do açougue depois de um roubo.

Foram à festa. Ela dançou bastante, mas lá pela meia noite a consciência pesou, a falta do marido, que dançava tão bem, se fez sentir e ela achou melhor ir para casa. Despediu-se do irmão e da cunhada e foi embora sozinha. A lua cheia a clarear o caminho e lhe fazer companhia.

A noite estava silenciosa demais. Nem os animais noturnos faziam barulho. A moça viu o juazeiro na curva da estrada de chão e tranquilizou-se. Logo estaria em casa. Apressou o passo, já maldizendo a hora que saíra a noite, em plena quaresma, sem a proteção do marido.

Um vento forte fez as folhas secas rodopiarem a sua volta em um redemoinho. Em vez do cheiro das folhas e da terra molhada pela chuvinha da tarde, um forte odor de enxofre lhe envolveu. Um esturro de animal fez sua pele se arrepiar. Ela sabia o que estava por vir. Ela sabia o que ele era. Sua aparição era quase garantida em noites como aquela. Ela tinha se esquecido.

A moça nunca o tinha visto antes, mas com certeza ela o veria agora. Não dava tempo dela chegar a casa. Ela ia ser apanhada. Então, a moça saiu correndo em direção ao juazeiro, sem olhar para trás. O odor de enxofre estava cada vez mais forte, assim como o vento, os urros e agora os latidos frenéticos do rompe ferro, o cachorro do vizinho. A moça começou a subir a árvore rezando para aquela criatura não subir também. Sentiu um puxão em seu vestido e olhou para baixou. E lá estava ele.

Um lobisomem. Enorme. Monstruoso. Uma mistura de bicho e de homem. Todo peludo. Negro. Os dentes arreganhados. Estava tentando abocanhar suas pernas e tirava lascas da árvore com suas garras pretas. Ela gritava desesperada enquanto alcançava um galho mais alto, livrando-se dos dentes do infame. Gritos e latidos altos vinham da estrada. A criatura saiu correndo em uma velocidade espantosa e embrenhou-se no mato fechado atrás de sua casa.

Seu irmão tinha sido avisado pelos vizinhos e levou-a para casa. O lindo vestido vermelho estava esfarrapado. Como explicar ao marido o que acontecera? O irmão da moça lhe fez companhia até o marido dela chegar do seu turno, depois os deixou sozinhos. Não queria participar daquele trelelê.

Abraçada ao marido, chorando com a cara enterrada em seu peito, a moça contou-lhe o que acontecera, esperando por sua solidariedade, compreensão e perdão por ter saído sem ele. Quando ele começou a rir, ela estranhou.

- Por que você está rindo, o que eu passei não foi engraçado.

Ele ria com a mão na boca tentando se conter, mas depois em meio a uma gargalhada falou:

- Eu não lhe disse que não era para você sair de casa sem mim?

Então, a moça viu os fiapos do seu vestido vermelho, entre os dentes do seu marido.

Vestido Vermelho (Conto)Onde histórias criam vida. Descubra agora