MAGIA

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Se algum dia alguma alma se aventurar pela estradinha que passa pela plantação de milho do seu Jó e seguir morro acima até onde não se vê mais estradinha nenhuma, talvez as árvores lhe mostraram o caminho até o pasto, deixando-se expiar por entre os troncos. Se continuar andando talvez encontre a cerquinha capenga de arame farpado e, logo à sua frente, o pasto verde com flores amarelas. Aí está o momento, se conseguir enxergar a porteira de madeira escura ao fundo da paisagem verdejante, talvez, com sorte, chegue ao riozinho gelado que escorrega pelas pedras e se rodeia de eucaliptos. Quando o Sol estiver à pino sobre as árvores, estas vão ser abraçadas pelo vento que sopra para o Norte, e se tiver prestado atenção até agora, vai saber pra que lado ir. Depois do rio e dos eucaliptos, se encontra uma clareira salpicada com um punhado de pinheiros, e esta, a clareira, se estende comprida até perder de vista. Da cidade não se escutam mais histórias sobre essa terra esquecida por gerações, da cidade não se tem a vista das clareiras nem o a beleza do campo aberto, coberto de capim alto.

Quando mais se andava mato à dentro, mais casinhas miúdas de madeira se podia avistar com o canto do olho, elas eram como estrelas que formavam uma constelação caso vistas de cima. Em uma dessa casas vivia uma garota, e como bom bicho do mato, ela explorava as clareiras espalhadas por aquela terra silvestre. Quando a noite se deitava sobre as árvores e ao longe se podia ouvir o barulho do rio, ela caminhava descalça, sentindo a terra sob seus pés, e cavando a terra com os dedos, como se prepara um leito para repousar. Seu nome é Nuha, dentro dos seus olhos grandes e castanhos existe um espírito livre e selvagem, que se recusa a ser domesticado, ela não é pura matéria, ela cintila na luz do fogo e abraça o calor completamente.

De lábios vermelhos e pedras na mão, outra moça viaja de canto a canto, seguindo as estrelas e o vento que sussurra a direção em seus ouvidos. Seus cabelos avermelhados, completamente revoltos parecem sempre flutuar ao seu redor, e quando o Sol resolve beijar sua pele, o amorenado da tez reluz como ouro. Ela não pertence à lugar nenhum, ela perambula e levanta poeira em qualquer lugar que seus pés tocam o chão batido. Muitos vêm, caminhando a pé, tentando encontrar aquela que viaja por todas as estradas e ao mesmo tempo por nenhuma, aquela que faz a jornada com o vento, e como ele, não é vista, apenas sentida. Seu nome é Badan, ela é força e energia que não se guarda, que extravasa e que não se controla. Ela viaja e se torna o próprio caminho.

Nenhuma das reclusas residentes das clareiras se aventurava depois da cerquinha de arame farpado, até ali ainda se via um ou outro curioso bisbilhotando aquele mato, mas até ali, a única companhia eram as vacas que pastavam e as cabras magras que se espalhavam pelas clareiras depois do rio. No começo de uma manhã gelada, onde o Sol despertou Nuha junto com o cacarejar das galinhas, a garota seguiu pelas árvores até o rio, onde, logo ao lado, ela havia plantado abóboras junto ao capim alto. Quando toda a colina se alinhava com a terra abaixo de sí e com a Lua que dançava à sua volta, a colheita reunia as moças, as velhas, as meninas e as mulheres, as fogueiras iluminavam os rostos das mulheres junto com a fertilidade da terra.

As almas que povoam a clareira possuem mãos habilidosas e um carinho com a terra, e ela, fértil e produtiva devolve todo o carinho provendo tudo que se planta. Das pequenas roças e plantações, saem colheitas fartas, regadas pelas chuvas torrenciais que mantêm o solo molhado e o mato verde. Quando toda clareira se juntava, pés descalços e cabelos soltas e o sangue visitava algumas, haviam rostos pintados e corpos nus dançando em sintonia, seguindo uma coreografia que não era ensaiada, mas fluía de seus corpos como se tivessem nascido para isso. Todas sabiam que haviam nascido para isso. As vozes, o burburinho e a movimentação não cessou enquanto as fogueiras não adormeceram em brasa, para logo após sonharem em cinzas. Por entre as árvores murmúrios, risadas, conversas, canções e versos eram ouvidos, irradiando de clareiras reclusas, localizadas exatamente na fronteira entre o material e o imaterial.

Nuha era bicho no mato, nasceu assim e cresceu assim. Ela sempre soube que parte da essência de ser bicho do mato tem a ver com a certeza de que sempre existiram olhos que apenas conseguiram lhe ver como presa. Como um animal silvestre a ser domado. Domesticado. Sempre existiram olhos que ao avistarem a terra forasteira de seu corpo, se tornam mãos que somente têm a capacidade de tomar. Conquistar. Sempre existiram aqueles que tentarão aprender sua língua nativa esperando vencer a guerra e tomar posse. Tudo o que o machado esquece, a árvore lembra. Nuha anda descalça pelas trilhas entre o mato e apaga suas pegadas depois. O medo de ser presa e voltar pro cativeiro é mais forte que a própria gravidade que lhe mantem os pés no chão.

Quando os olhos das duas moças se encontram pelos caminhos dos pastos, do mato ou das clareiras, existe sempre uma faísca. O mundo frenético de Badan para de girar quando os grandes olhos escuros de Nuha olham tão profundamente para si, que se pode sentir a alma observada. Entre um olhar e outro as mãos se tocam tímidas, os dedos longos se entrelaçando enquanto um sorriso serpenteava pelos lábios avermelhados de Badan. Existia uma mágica ali. Uma sensação extraordinária de paixão quando as duas bocas se encontram em um beijo casto, os lábios se tocando ao mesmo tempo que os corações se alinhavam. As mãos de Nuha tocaram o rosto moreno da outra, seus rostos tão perto que se podia sentir a respiração contra a boca, seus dedos se entrelaçaram com os cabelos leoninos de Badan enquanto ela se aproximou mais, fechando seus olhos, em um pedido mudo de mais um beijo.

Realmente haviam uma mágica. Na forma com que as roupas deslizavam dos corpos que apressadamente buscavam contato novamente, o calor do corpo de uma invadindo a outra enquanto os lábios ainda deixavam pedacinhos de amor sobre os lábios que se uniam. Haviam também sussurros, que faziam a pele se arrepiar por inteiro enquanto mãos afoitas buscavam por quadris e cinturas. Badan apreciava a maneira com que os cabelos escuros de Nuha escorriam pelos seus ombros tocando a pele sensível das costas, seus lábios depositavam beijos acompanhados de promessas e elogios, que alcançaram seu pescoço e rapidamente desceram até seus ombros.

Seus dedos se entrelaçaram e seus olhos se voltaram para o céu estrelado acima das duas. Seus olhos refletiram a luz das estrelas e, quando voltaram a se encarar, elas, as estrelas, ainda cintilavam em seus olhos. Não houve hesitação quando seus lábios se tocaram novamente, num beijo lento, em um ritmo que parecia muito mais que perfeito para as duas, era ideal. No calor do abraço uma da outra, seus corações ainda recitavam versos e poemas de amor, correspondidos no aconchego daquele contato tão íntimo.

Os ciclos se alinham, o universo ao nosso redor se conecta e a nossa carne lembra de onde ela pertence. Há quem olhe para as estrelas e não perceba que elas são o registro de um passado longínquo, que não entenda a necessidade de se tornar um. Badan é um espírito livre, sempre foi e o seu afeto por Nuha não muda isso de nenhuma maneira, ela não pertence à Nuha, ela escolhe estar com ela. A própria Nuha é animal silvestre, bicho do mato, e não é domesticada, a terra de geografia selvagem do seu corpo não é colonizada nem conquistada, mas sempre estará aberta para a eterna viajante, a terra sagrada será solo para a jornada.

É possível que seja válido dizer que, as casinhas reclusas das clareiras eram o lar para feras feridas, para grandes mulheres com grandes passados e com futuros maiores ainda. Não havia um consenso sobre como todas essas histórias foram se conectando e se alinhando com o passar do tempo. Mas pouco realmente importa, ainda há luz por entre a copa das árvores, a Lua ainda dança ao nosso redor, ainda dançamos em volta do Sol, o solo debaixo dos nossos pés é fértil e provedor de vida e o amor ainda habita nossos corações.

Discurso da TerraWhere stories live. Discover now