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Tudo começou em julho do ano passado. Mal sabia eu como aquela viagem mexeria comigo.

Até então eu era alguém que sentava no meio da sala de aula. Não era inteligente, não era bonita, não era bagunceira, não era simpática, não era ninguém.

Acho que nem a Val eu era direito.

Eu era apenas uma menina comum do cabelo nem liso nem cacheado, nem preta nem branca (meu pai é negro e minha mãe é branca), nem gorda nem magra. Mais uma adolescente de aparelho nos dentes e sardas no rosto, uma das últimas a ser escolhida pros times na educação física, mas não tão ruim a ponto de ser a última, outra das que tirava média 7.

No máximo eu era a garota que gargalhou alto numa hora imprópria no oitavo ano e chamou a atenção da escola toda e quis se enfiar embaixo da terra e morrer. E nos outros dias, eu era conhecida como a amiga da Natália.

Naty, minha mesma e única amiga de verdade desde a pré-escola. Ela também era como eu, uma pessoa mediana e um pouco retraída e acho que por isso nós nos aproximamos. É claro que com o passar dos anos ela aflorou enquanto eu continuei no meu canto, mas ela nunca me abandonou.

Além dela eu tinha outras colegas de sala, que existiam basicamente para os trabalhos em grupo e para curtir minhas raríssimas postagens no instagram, todas de cachorros. Essas meninas se dividiam em pessoas com diferentes atributos: algumas tiravam nota máxima, outras eram boas nos esportes e outras ao menos tinham um namorado. Eu nunca tive nem amigos meninos.

Já eu, seguia observando o mundo pela tela do meu celular. O mundo e meu crush: o cara mais lindo da escola e que nem sabia meu nome. A Naty cansou de me dar bronca falando que, ou eu devia puxar papo com ele, ou desencanar de vez.

Enfim...

A verdade é que eu era feliz curtindo e comentando a vida alheia da segurança do meu sofá e sentia que tudo o que precisava era da minha televisão, que às tardes e aos finais de semana exibia ficção científica e fantasia. Eu tinha planos de maratonar várias séries nas férias do meio do ano, comer muita porcaria e no máximo dar uma voltinha no shopping com a Naty. Ela tinha começado a namorar e eu estava dando um tempo para as duas serem felizes.

Não tava com inveja não, juro.

Daí que meus pais decidiram acabar com as minhas férias tranquilas inventando de viajar pra tal de Viradela. Era a cidade natal do meu pai e ele pretendia visitar um tio-avô que estava nas últimas e morava com uma prima dele. Uma cidade com dez mil habitantes foi a única coisa que me dei o trabalho de aprender porque o que me importava é a casa ter wifi. Só de imaginar estar cercada de velhos me atormentando o tempo todo, me dava vontade de sair correndo.

E eu até tentei convencer meus pais de que eu tinha que ficar em São Paulo inventando que precisava apoiar a Natália, porque ela tinha acabado de contar para os pais dela que era lésbica, como se não fosse óbvio, mas nem assim eles me deixaram ficar em casa.

Parece que o objetivo de vida dos meus pais é me infernizar. Seja me dando o nome de uma senhora de quatrocentos anos (quem da minha idade se chama Valquíria?), seja me obrigando a trabalhar meio período na floricultura da minha mãe em dezembro, pra eu "aprender a dar valor pras coisas".

Eu já tinha 15 anos, caramba! eu seria capaz de cozinhar arroz no micro-ondas, grelhar algo na airfryer e usar a máquina de lavar roupas. E pedir uma pizza no sábado à noite porque, eu mereceria, né.

Mas não.

Não. Não. Não. A palavra mais amada dos meus pais.

Não pode ficar em casa sozinha por dez dias, não pode ter um cachorro, não pode ficar no whatsapp até depois da meia noite...

Viradela [em degustação]Onde histórias criam vida. Descubra agora