I.

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ESTIGMATIZADOS


Desde que a Guerra dos Farrapos estourou ao nosso redor, a incerteza e o medo tornaram-se meus companheiros leais.

Eu não era mais tão jovem para não lembrar dos eventos que antecederam a revolução que tomava o sul do Brasil. Ao contrário do que muitos pudessem pensar, os sinais da insatisfação dos latifundiários rio-grandenses se fizeram notar muito antes de 1835. Eu me recordava, ainda criança, de quando meu pai esbravejava à mesa contra o então Império, discursando por longos minutos acerca dos injustos impostos que caíam sobre o charque nacional. Eu também tinha lembranças muito vívidas de quando seu tom mudou para cochichos com homens que vinham até nossa casa após a ceia, quando eu fingia dormir no andar superior e ouvia, da minha cama, palavras de indignação contra o governo imperial e o presidente da nossa província.

Mais tarde fui descobrir que aqueles homens seriam denominados farroupilhas e que meu pai era um deles.

Os revolucionários protestavam contra os escorchantes impostos sobre o charque produzido no Rio Grande do Sul e que inviabilizavam a justa competição com o charque vindo do Rio da Prata, mas também exigiam um presidente de província que zelasse pelos nossos interesses e não nos abandonasse ao acaso.

Não pareciam demandas absurdas e tampouco eram. Mas não tínhamos como saber, ainda no começo da revolução, com a tomada de Porto Alegre pelos farroupilhas, o quanto custaria demandar dignidade frente ao Império.

Meu pai tinha retornado para casa após uma batalha particularmente violenta. Por sua idade e ferimentos, havia sido imposto a ele permanecer em casa. Era muito mais valioso desta forma, podendo articular entre forças dissidentes dentro do próprio movimento. No começo, ele resistiu em aceitar um papel menos combatente em uma guerra que, segundo ele, redesenharia a estrutura de poder em nossa província. Mas o tempo lhe mostrou que nem todos os revolucionários eram aqueles na frente de batalha. Ele não tardou em perceber que sua habilidade de coordenação era valiosa para conquistar aliados a causa e articular diferentes interesses dentro do grupo.

Desta forma, não era incomum que recebêssemos em nossa casa muitas visitas de estranhos cujos rostos eu raramente via. Farroupilhas cuja identidade eram preferencialmente mantidas em sigilo em decorrência de possíveis investidas por parte do Império. Meu pai os recebia nas madrugada frias, pela porta dos fundos. Pequenos rangidos em nosso assoalho denunciavam suas chegadas e saídas. Raramente ficavam por muito tempo; e nunca retornavam. Todo cuidado diante das forças imperiais era pouco, pois sabíamos que eles tentariam retomar o controle de Porto Alegre com um novo presidente de província e a punição dos líderes militares da Revolução.

Estranhei, contudo, quando uma dessas visitas rompeu com a regra de meu pai de não receber um aliado por mais de uma vez. Um homem começou a aparecer com certa frequência. Notei sua voz no meio das madrugadas, um tom mais elevado que os cochichos reservados aos farroupilhas que geralmente nos visitavam. Seu sotaque era distinto do nosso. Seu tom autoconfiante, quase soberbo. Era um abismo de diferença entre os farroupilhas sem rosto que, às vezes, ouvia dos meus aposentos.

Minha estranheza apenas cresceu quando pude dar um rosto a essa voz, quando este homem surpreendeu-me certo dia à mesa para o desjejum. Meu pai nos apresentou com uma formalidade incoerente com sua personalidade e narrou meus atributos como uma jovem prendada. Um gosto amargo me tomou a boca. Sentia-me exposta, de repente, diante dos olhos daquele homem cuja idade poderia ser a de meu pai. Seus olhos escuros viajavam entre meu colo e meu rosto, examinando cada centímetro de minha pele exposta com uma apreciação que me desconcertou.

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