Naufrágio

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As águas do mar começaram a invadir o navio sem que ninguém percebesse. A tempestade, cada vez mais forte, elevava as ondas e enfurecia o mar. Os ventos uivavam de dor pelas almas que seu amigo iria engolir. As pessoas naquele transatlântico, alheias à fúria da natureza, comiam, bebiam e se divertiam como se aquele não pudesse ser o último dia de suas vidas. Mas, nem todas estavam alheias.

Agatha, com o braço no do seu marido, via pelas janelas, formas negras nas águas revoltas quando o mar era iluminado pelos raios. O som que aquelas criaturas faziam era abafado pelo ribombar dos trovões e pela música alta. Porém, ela conseguia ouvir nitidamente. Sua pele estava arrepiada apesar do ambiente agradável do salão de festas do navio

– Querido, eu vou ao toalete e já volto. – Agatha deixou Alonso com alguns amigos, comemorando seu aniversário com taças de champanhe e canapés e foi em direção ao chamado.

Passou por vários corredores acarpetados que abafaram o som de seus saltos altos. Estava prestes a passar pela porta que daria no deck quando um raio iluminou a silhueta de uma mulher na amurada. A luz repentina refletiu nas gotas de água que escorriam por seu corpo e no vestido singelo conferindo-lhe um brilho fantasmagórico.

Agatha viu seu avanço com um misto de curiosidade e medo que tornava seus músculos duros e lhe impediam de sair do lugar. Os cabelos da moça pareciam ouro derretido escorrendo até a cintura. Estavam adornados com uma tiara de flores marinhas e conchas. Seus olhos eram como o mar, tempestuosos e profundos. Sua pele acetinada e as linhas perfeitas do rosto fizeram Agatha pensar que nunca vira tanta beleza na vida. Ela estendeu-lhe a mão. Então, Agatha percebeu uma pequena bolsinha que a moça lhe entregava.

Apanhando o objeto, sua mão fechou-se sobre ele com possessividade e ela sentiu o que tinha que fazer. O perfume de algas marinhas e maresia aumentaram seu sentimento de urgência e ela saiu correndo de volta ao salão de festas. Ainda olhou para trás e, em meio ao clarão de relâmpago, a moça lhe lançou um olhar de brevidade e desapareceu na escuridão da noite.

Chegando ao salão, Agatha foi direto ao seu marido e enfiando os dedos dentro da pequena bolsa sentiu o pó grudar-se neles, viu o brilho multicolorido e rapidamente passou-o no pescoço e pulsos de Alonso. Depois fez o mesmo com Cassandra, a filha de sua amiga, que passava correndo em sua alegria infantil.

Notando o comportamento estranho da esposa, Alonso perguntou-lhe o que estava acontecendo. Ela não tinha tempo para responder. Lágrimas escorriam por seu rosto. Seu coração estava oprimido pelo peso das decisões, que tinha que tomar e pela amargura do pesar. Agatha sentiu novamente a urgência quando conseguiu ouvir nitidamente o som da tempestade acima da balburdia do salão. Saindo pelo navio como uma desvairada, continuou freneticamente o trabalho de passar pó brilhante em algumas pessoas que conhecia e em outras que lhe olhavam como se ela estivesse louca. Até que esbarrou em outra mulher, uma camareira, com uma bolsinha semelhante a sua, em outro andar do navio.

Elas se olharam aflitas. A camareira também estava com os olhos marejados.

– Não há mais tempo. – Ela disse tentando enxugar as lágrimas, deixando um rastro de poeira brilhante abaixo dos olhos. – Não consegui encontrar todos os meus amigos.

– Não tem que ser só seus amigos e infelizmente, nem todos eles podem ser salvos. – Agatha lhe disse. – Mas, você pode salvar também as outras pessoas... Quem você não conhece. Aqueles que merecem, que podem e devem ser salvos.

A camareira lhe meneou a cabeça.

– É uma escolha difícil. Eu vejo a luz em volta deles, mas muitos deles me desprezaram e me ignoraram enquanto os servia. Eu simplesmente não consigo! – Disse a camareira choramingando.

Agatha tentou abraçar a moça para passar-lhe conforto, mas esta se desvencilhou e abriu a porta de uma cabine. Lá havia outras duas camareiras, que lhes olharam atônitas.

– Rápido, deixem isso aí, peguem esse pó, passem em vocês e em seus parentes e amigos que possam estar nesse navio. – Como elas não se movessem, a camareira gritou: – Agora!

Agatha pegou no braço dela antes que saísse em disparada e disse:

– Você sabe que não funciona assim. Não se pode enganá-las. Você não sente? Elas irão perceber assim que tudo acontecer e você pode ser castigada por isso.

– Eu não me importo. Quero salvar o maior número possível dos meus. E além do mais, elas já estão me chamando.

Ao dizer isso, a camareira saiu correndo com Agatha em seu encalço, não conseguindo contê-la antes de ela pular da amurada e ser tragada pelo mar agitado pela tempestade. Outro raio iluminou o céu e Agatha pode ver a camareira sendo despedaçada e a água se tingir de vermelho. Ela olhava horrorizada para aquela cena quando emergiram uma... duas... três... Inúmeras cabeças na água. Havia formas masculinas também, não só as tradicionais femininas das lendas. Agatha assustou-se com as terríveis feições, mas assim que o ar da noite tocou-lhes os rostos, a beleza e o encanto transformavam-lhes a aparência e enfeitiçada, Agatha esqueceu o horror que vira antes.

Eles a encararam silenciosos e, Agatha sentiu a pergunta em sua mente. Levantou a bolsinha, mostrando que ainda restava pó. Então, a moça loira que lhe entregara o presente, tomou a frente dos outros e disse numa voz atemporal:

– Vá!

Agatha correu, abrindo cabines, passando por corredores, subindo e descendo escadas, lutando contra o dever e a vontade. As lágrimas escorriam e ela as limpava com as costas da mão a fim de não desperdiçar um grão sequer daquela poeira salvadora. Ela não se importava com o susto das pessoas nem por ser chamada de louca ou coisa pior. Passava-lhes o pó e seguia correndo até que sentiu que não havia mais nada ali dentro.

Juntou-se na amurada com as outras pessoas selecionadas para aquele serviço. Agarrou-se para não ser levada pela fúria da tempestade e todos lançaram seus saquinhos vazios no mar. Um som musical de lamentos encheu o ar e o navio balançou com mais força. Não por causa da tempestade, mas pelo que estava no mar e queria derrubá-lo.

Será que estariam no Triângulo das Bermudas? Agatha pensou. Não importava, o navio tinha perdido a rota e entrara oficialmente no território delas. Agora não tinha mais volta.

Uma onda gigantesca engoliu o transatlântico lançando Agatha, e aqueles que estavam no deck ao mar. Antes de ser engolida pelas águas turbulentas, a moça que tanto lutara para salvar tantos, lembrou que se esquecera de passar o pó em si mesma.

Abaixo da superfície, ela viu a água encher-se de cores. Entre eles, silhuetas sinuosas se alimentavam vorazmente daqueles que caiam ao mar sem a proteção do pó brilhante.

Uma das formas nadou rápido em sua direção e parou a sua frente. 


Continua...

Águas TurbulentasOnde histórias criam vida. Descubra agora