Dentro da água, eles mantinham a forma animalesca, com instintos predatórios. Fora da água, eles preferiam a beleza e o encanto para seduzir suas presas. Agatha reconheceu a sereia a sua frente, como a moça loira que lhe deu a bolsinha de pó. Ela lhe pegou a mão e a puxou para longe do navio afundando. Para o fundo do mar. Já vermelho e cheio de todo tipo de predador marinho, não só sereias e tritões.
A velocidade em que desciam amedrontou Agatha e ela sentiu que a pressão do mar só não era maior, devido ao poder da sereia a seu lado. A moça arriscou olhar para os lados e viu várias outras pessoas também serem levadas por outras sereias e tritões. Quando olhou novamente para baixo, Agatha tomou um susto. Uma bela cidade marinha estava envolta em uma redoma, assentada no leito do mar em meio a uma exuberante vegetação marinha.
Atravessaram a barreira da redoma e a sereia a seu lado, linda outra vez, colocou-a em uma espécie de praia. Ela pediu que esperasse ali com os outros e voltou ao mar em busca do resto dos escolhidos, sobreviventes do naufrágio do transatlântico. Agatha começou a andar pelos sobreviventes daquela aterradora experiência até que encontrou Alonso. Ele a abraçou aliviado.
– Que bom que você está aqui! O que foi isso que aconteceu? – Ele estava ainda em estado de choque. – Uma hora, estávamos na festa do meu aniversário, na outra, na agonia do navio naufragando, seres mitológicos resgatando pessoas, outras virando comida de tubarões. E eu só pensava que tinha te perdido.
– O povo do mar só salvou as pessoas por ele escolhidas. Passamos um pó brilhante que nos deram naqueles que nos indicaram.
Alonso olhou Agatha estupefato por um longo momento, assimilando o que ela dissera e seus desdobramentos.
– Tia Rute... – Alonso soltou Agatha, incrédulo. – Ela estava ao meu lado quando você passou o pó em mim. Eu pensei se tratar de uma brincadeira. Mas você não passou o pó em minha tia. Ela é idosa, uma senhorinha boa, digna e está sendo comida por monstros do mar!
Agatha sabia o quanto Alonso amava aquela que o criara com tanto amor quando seus pais faleceram.
– Eu não podia. – Ele lhe lançou um olhar horrorizado e ela disse suplicante: – Eu queria, mas não podia. Não tive escolha! – Agatha tentou pegar a mão de Alonso enquanto ele se esquivava de seu toque. – Ela não tinha a marca.
– Que marca?! – Alonso apertou os braços de Agatha sacudindo-a. – Que marca?!
– Um tipo de aura. Uma luz azul-esverdeada em volta da pessoa. É assim que sabíamos quais pessoas eram as boas e dignas o bastante para serem salvas pelo povo do mar e viverem aqui entre eles.
Alonso soltou Agatha como se tivesse repulsa dela.
– Eu já disse, eu não tive escolha. Apenas passei o pó naqueles em que vi a marca. E a aura de sua tia estava... – Agatha baixou o olhar. – Diferente... Manchada... Escura... Estranha.
Alonso ficou um tempo pensando sobre a resposta da esposa olhando-a chocado.
– Mas porque não passou nela mesmo assim? Você sabe o quanto ela é importante para mim. O quanto vocês duas são!
– Eu não podia! – Gritou Agatha aos prantos. – Eles teriam me matado.
– E ela não vai morrer? – Alonso disse e saiu transtornado deixando Agatha sozinha.
A culpa que lhe corroeu o coração durante toda a noite em que passara o pó naqueles conhecidos e desconhecidos, assomava-se agora ainda mais, pois não pudera salvar aquela que era uma mãe para seu marido.
Chorando ela foi até a redoma e tocou-a. A sereia loira veio imediatamente conversar com ela e consolá-la.
Quando o mar já estava calmo e os habitantes do mar mostravam a cidade e as acomodações aos sobreviventes escolhidos do naufrágio, Alonso mais sereno, procurava por Agatha e encontrou sua tia Rute acompanhada da bela sereia loira que o salvara. Atônito ele abraçou aquela a quem tanto amava como uma mãe e perguntou-lhe:
– Mas como? Como a senhora está aqui?
Ela lhe sorriu, tocando o rosto querido do sobrinho.
– Agradeça a esta bela moça... – Disse Rute apontando para a sereia. – E a sua amável esposa.
– Venha. – Disse a sereia rainha para um Alonso estático na praia de areia branca com minúsculos cristais azuis. – Aproveite o pouquíssimo tempo de sua tia.
Alonso olhou assustado para a sereia.
– Nossa medicina é avançada, mas a doença de sua tia está em estágio terminal. Ela só tem no máximo um dia de vida. Não podemos fazer nada, por isso ela não tinha sido escolhida. Contudo, ela não teria uma morte cruel. Não somos tão ruins assim. E, também não gostamos de carne doente.
Alonso olhou estupefato para a tia que saíra toda sorridente acompanhando um grupo liderado por um tritão usando uma tiara de flores marinhas e conchas, idêntica à de sua anfitriã. Depois procurou Agatha entre os sobreviventes ainda na praia, até seus olhos encontrarem os insondáveis olhos da sereia rainha. Seu peito se afligiu com o que viu lá.
– Cadê a Agatha?
– Ela trocou de lugar com sua tia, depois que viu o seu sofrimento. – Disse a sereia.
Alonso caiu a seus pés, abraçando seus joelhos e chorando pela perda da mulher.
– Não se preocupe. – Disse-lhe a sereia passando a mão por sua cabeça em um gesto de compreensão e conforto. – A bondade e o amor de sua esposa salvaram-na de um destino mais cruel. Porém, ela será como nós e terá que expiar os erros de vida de sua tia, lá fora, no mar. – Disse a sereia apontando para as imperscrutáveis águas profundas do oceano. – Não poderá entrar aqui durante um tempo.
Alonso perguntou mais aliviado:
– Quanto tempo?
– Sete anos... Se ela sobreviver...
Assustado, Alonso olhou para fora da redoma, para o lugar onde lhe era indicado. Ali estava uma sereia de aspecto animalesco. Ela acenava tristemente, mas com um olhar amoroso. Quando ele ia responder o aceno, viu sua amada esposa virar-se assustada e sair em disparada em direção à escuridão do mar.
Com o coração apertado, Alonso ainda teve o vislumbre da brilhante cauda furta-cor de Agatha, antes de ela desaparecer na imensidão marinha sendo perseguida por um tubarão branco de aparência terrivelmente feroz.
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Águas Turbulentas
ContoA festa que Agatha arrumou para Alonso comemorar seu aniversário em um transatlântico tinha tudo para dar certo, não fosse a tempestade e o iminente naufrágio. O povo do mar apresenta uma salvação, mas envolve difíceis decisões que Agatha tem que to...