↬ O homem e a obra ↫

1.3K 44 19
                                    

Introdução
Por
Charles Baudelaire
-1852-

É um prazer bem grande e útil comparar os traços fisionômicos de um grande homem com suas obras. As biografias, as notas sobre os costumes, os hábitos, o físico dos artistas e dos escritores sempre suscitaram uma curiosidade bem legítima. Quem não procurou algumas vezes a acuidade do estilo e a nitidez das ideias de Erasmo, no recorte acentuado de seu perfil, o calor e o tumulto de suas obras na cabeça de Diderot e na de Mercier, onde um pouco de fanfarronada se mistura à bonomia; a ironia obstinada do sorriso persistente de Voltaire, sua careta de combate, o poder de comando e de profecia no olhar lançado para o horizonte, e a sólida figura de Joseph de Maistre, águia e boi ao mesmo tempo? Quem não se deu ao engenhoso trabalho de decifrar A comédia humana na fronte e no rosto potentes e complicados de Balzac?

Edgar Poe era de estatura um pouco abaixo da média, mas todo o seu corpo era solidamente constituído. Tinha pés e mãos pequenos. Antes de vir a ter sua compleição combalida, era capaz de maravilhosas proezas de força. Dir-se-ia que a Natureza, e creio que isso já foi muitas vezes observado, torna a vida bastante dura àqueles de quem deseja extrair grandes coisas. De aparência muitas vezes mesquinha, são talhados como atletas, tão bons para o prazer como para o sofrimento. Balzac, assistindo aos ensaios de Les ressources de Quinola, dirigindo-os e desempenhando ele próprio todos os papéis, corrigia provas de seus livros; ceava com os atores, e quando toda a gente fatigada de dormir, entregava-se ele de novo vivamente ao trabalho. Todos sabem que ele praticou enormes excessos de insônia e sobriedade. Poe, na mocidade, distinguira-se bastante em todos os exercícios de destreza e força; isto condizia um pouco com seu talento: cálculos e problemas. Certo dia apostou que partiria de um dos cais de Richmond, que subiria a nado aproximadamente onze quilômetros o rio James e voltaria a pé no mesmo dia. E o fez. Era um dia ardente de verão. Nem por isso passou lá tão mal.

Aspecto, gestos, marcha, posição da cabeça, tudo o assinalava, quando se achava ele nos seus bons dias, como um homem de alta distinção. Era marcado pela Natureza, como essas pessoas que, em um grupo, no café, na rua, atraem o olhar do observador e o preocupam. Se jamais a palavra "estranho", de que tanto se abusou nas descrições modernas, se aplicou bem a alguma coisa, foi certamente ao gênero da beleza de Poe. Suas feições não eram vultosas, mas bastante regulares, a tez de um moreno-claro, a fisionomia triste e distraída, e se bem que não a apresentasse, nem o tom da cólera, nem o da insolência tinham algo de penoso. Seus olhos, singularmente belos, à primeira vista pareciam de um cinzento sombrio; melhor examinados, porém, mostravam-se gelados por uma leve tonalidade violeta indefinível. Quanto à fronte, era majestosa, não que lembrasse as proporções ridículas que os maus artistas inventam, quando, para lisonjear o gênio, transformaram-no em hidrocéfalo, mas dir-se-ia que uma força interior transbordante impele para diante os órgãos da perfeição e da construção. As partes às quais os craniologistas atribuem o sentido do pitoresco não estavam no entanto, ausentes, mas pareciam deslocadas, oprimidas, acotoveladas pela tirania soberba e usurpadora da comparação, da construção e da casualidade. Sobre essa fronte tronava também, em um orgulho calmo, o sentido da idealidade e do belo absoluto, o senso estético por excelência. Malgrado todas essas qualidades, aquela cabeça não apresentava um conjunto agradável e harmonioso. Vista de lado, feria e chamava a atenção pela expressão dominadora inquisitorial da fronte, mas o perfil revelava certas deficiências: havia uma imensa massa de crânio, adiante e atrás, e medíocre quantidade no meio; afinal uma enorme potência animal e intelectual, e uma falha no lugar da venerabilidade e das qualidades afetivas. Os ecos desesperados da melancolia, que atravessam as obras de Poe, têm um acento penetrante, é verdade, mas é preciso dizer também que é uma melancolia bem solitária e pouco simpática para o comum dos homens.

Medo Clássico - Edgar Allan Poe - Vol. 1Onde histórias criam vida. Descubra agora