O barulho era insuportável! Preenchia sonoramente a madrugada de todos da Rua Nova Aliança, desde o começo com a avenida até o fim que dava numa praça, em todos os cantos se ouvia o som desesperador de vida. Eram três horas da madrugada, por exemplo, e dona Anastácia se revirava na cama tentando dormir, tentando se concentrar em seus olhos fechados, mas não conseguia. Seu Adalberto da esquina, que acorda tão cedo pra assar os pães e abrir sua padaria, chega a sentar em sua cama e desistir de tentar dormir. Todos os homens da rua reclamavam, pois acordavam cedo para trabalhar; todas as senhoras reclamavam, a insônia causada pelo som perturbava suas belezas e muitas também acordavam cedo; as crianças ficavam com medo; os cachorros latiam. Todos concordavam com uma coisa: aquilo tinha que acabar!
A missão coube ao senhor Emanuel, e foi decidida pela associação dos moradores do bairro. Também, não era pra menos, foi o senhor Emanuel que ajudou o menino abrigando-o em uma de suas hospedagens sem que pagasse nada. Ficara com pena depois que o encontrou roubado, surrado, desabrigado, com fome. Senhor Emanuel o acolheu, cuidou de suas feridas, o alimentou, o abrigou. Quem o visse também ficaria com muita pena e indignado, o garoto só tem quatorze anos de idade! No início tudo bem, todos da vizinhança receberam o menino como novo integrante da rua. Senhor Emanuel até passou a ser tratado como herói. Ajudar ao próximo com uma ação tão acolhedora é raro em nossos dias, e quando vista é recebida ao som de aplausos; quem não tem coragem de fazer pelo menos prestigia o outro que fez, tarefa essencial pra continuar imóvel diante dessas situações. Mas já na primeira noite com o menino todos já perceberam que ele ia causar um grande incômodo. Por que ele fazia tanto barulho? Que motivo teria pra ficar a noite inteira fazendo aquele som? Senhor Emanuel passou logo de herói a vilão para todos. A rua era muito calma, considerada a mais calma de todo o Bairro, talvez até de toda a cidade, e os seus moradores, tão acostumados com o ritmo “silencioso” das suas vidas não iam suportar um tipo de comportamento como o do menino.
O único que sabia o que verdadeiramente acontecia era o Senhor Emanuel. Na primeira madrugada que ouviu o som ininterrupto foi até o quarto do menino para pedir que parasse, pois tentava dormir, foi aí que presenciou tudo: quando entrou no quarto viu o garoto sentado na cama, com as mãos na cabeça e os cotovelos apoiados nos joelhos. “Senhor Emanuel, eu não sei fazer parar!”. Disse o menino com os olhos cheios d’água, desesperado. Senhor Emanuel então viu que seu peito palpitava de uma forma extraordinária, pulava, saltitava para frente, e para espanto dele, era aquilo que causava o tão estranho som que perturbava a todos da rua. O garoto tinha um coração muito forte, suas batidas durante o dia não eram percebidas porque se misturavam com os outros ruídos urbanos, ruídos que até mesmo numa rua tão tranquila como a de Nova Aliança aconteciam, mas de madrugada, o sangue que era bombeado se escutava a muitos metros de distância, um som de vida tão forte que causava no garoto uma sensação de morte por ser tão diferente dos outros. E ao tentar dormir parecia que o coração se agitava mais e batia, batia, batia, batia... “Eu não sei o que fazer, sou diferente de todos. Desculpe-me, senhor Emanuel.” E o menino chorava... Com isso o homem ficou com pena, mais pena do que tinha antes. Sua missão foi sendo adiado por ele mesmo, e, com isso, o povo até que foi reclamando menos do som cardíaco. Foram aos poucos se acostumando... aceitando... acrescentando cada vez mais o ritmo pulsante nos seus dias.
Certa vez o menino pensou em suicídio. Não pelo motivo de ser solitário e sim por saber que sua anomalia causava tanto desconforto nas pessoas. Ora, a solidão é companheira de milhares de pessoas nas cidades de hoje, quimera cruel que vicia e se espalha como um vírus; mas quem dera, pensava o menino, se o seu problema fosse apenas solidão, pois dessa maneira sofreria sozinho e não teria em si a culpa de causar tanto transtorno. Ele não entendia porque seu coração era tão barulhento, tão forte, tão seu. O que acabava não permitindo seu suicídio era a sensação de que não era ele que estava errado no mundo, era o mundo que estava errado. Esse pensamento era louco, afinal de contas a maioria vence, mas ele gostava às vezes de pensar nisso porque era algo que o fazia permanecer vivo.
Um dia, Senhor Emanuel acordou mais cedo e não sabia o porquê, não fora pelo barulho cardíaco, já havia se acostumado como todos na rua. Preparou-se, arrumou umas coisas, tomou café da manhã e preparou um para o menino. Subiu as escadas para entrega-lo em seu quarto, foi quando ouviu um barulho além do pulsar de um coração forte, parecia o som de asas. “Veio do quarto dele” Pensou o estalajadeiro. Foi até a porta, parou de frente a ela e esperou escutar novamente o som novo, quando teve certeza que algo a mais vinha do quarto abriu a porta e vislumbrou uma cena muito estranha: o menino estava de pijamas, em pé, de frente para um pombo branco que entrara pela janela aberta. Nem o pombo e nem o menino olharam para o Senhor Emanuel, estavam conectados, concentrados, um parecia entender o outro. O coração do menino batia, e o pombo o olhava fixo em seus olhos. De alguma forma o menino entendeu o que o pombo queria ali, e o pombo entendeu por que o menino sofria tanto. Após ficarem uns instantes sem se mexer, o menino finalmente olhou para o estalajadeiro, com o olhar triste e sorriso nos lábios. Tirou a parte de cima do pijama. Seu peito remexia com o bater do coração. Foi até a janela, olhou para o sol e, se reclinando no chão, tomou a forma de um pombo cinza e voou pela janela junto do pombo branco... pra liberdade... pra felicidade enfim descoberta...
Quem diria! O menino era pombo! Por isso seu coração era diferente, não era humano. Tudo fazia sentido para Senhor Emanuel agora. Ou não? Bem, ele tentava não pensar nisso pra não dar ideia para confusão. Só sabia de uma coisa: ia durar muito tempo até os moradores da Rua Nova Aliança voltarem a ter uma noite de sono tranquila... Dona Anastácia agora tomava comprimidos para conseguir dormir, seu rosto já tinha olheiras assustadoras; seu Adalberto, o padeiro, já fazia pão com gosto amargo, sua intranquilidade noturna passou para seu ofício, o homem simplesmente não conseguia dormir; os homens reclamavam; as mulheres reclamavam; até os cães estavam insatisfeitos e não latiam de noite porque não tinha mais barulho. A noite agora é silenciosa, não tem som algum, ruído algum, coração nenhum que pudesse repetir o som de vida que antes se escutava, e isso, definitivamente, tirou o sono de todos...
Roberto Santos Filho