Daisy

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Cumpria com meu dever de sempre. A família do morto já havia se afastado, uma mulher de meia idade teve de ser carregada pelos parentes mais fortes para que eu pudesse prosseguir com a rotina de sempre. Compreendo a dor de todos, mas existem partes do sofrimento que eu nunca vou entender. Afinal, que diferença vai fazer se a terra não for jogada sobre o corpo do morto? E é absolutamente comum que um ou dois parentes façam isso: armar um verdadeiro escândalo na hora que pegamos a pá e começamos a jogar a terra por cima do caixão. E quando se trata de um jazigo permanente, onde um caixão é posto por cima do outro, temos que colocar uma placa de concreto por cima do caixão antes de enterrá-lo, e toda vez que sei disso me preparo antecipadamente para os gritos ainda mais histéricos. Foi bem o caso daquela criança a qual eu estava enterrando. Abaixo dela estava seu irmão adolescente, falecido há poucas semanas atrás da mesma doença, e este era um dos casos que eu relevo completamente qualquer escândalo que possa partir dos familiares, pois ouvi mexericos entre as recepcionistas que aqueles eram os únicos filhos daquela mulher, e o marido já havia falecido também pela mesma doença maldita (por sinal estava logo abaixo do adolescente).

Apenas uma tragédia sem fim. O correto seria que eu permanecesse impassível em meio a isso tudo, mas uma parte de mim desejava muito que o espírito de um daqueles três estivesse vagando por perto. Eu queria dar alguma mensagem de esperança e conforto para aquela pobre mulher. Algo além do “eles descansaram” ou “vai ficar tudo bem um dia”. Infelizmente para ela e felizmente para os mortos, eles já haviam passado pelo outro plano. Apesar da morte sofrida e dolorosa, partiram em paz e não deixaram nada pendente. Quão espinhoso era o destino daquela mulher, colocar-me no lugar dela já me doía um pouco e eu nem a conhecia direito.

Nem me dei conta que havia parado meu serviço para olhar o cortejo se afastando. Inclusive me dando ao luxo de apoiar os antebraços no cabo da pá, os olhos quase fixos na mulher, tentando mandar pela ela um pouco de boas vibrações. Não que eu acreditasse muito nisso, mas nessas horas tudo o que é benigno é bem vindo.

Oi, Niall!

Estremeci com um leve susto. Era uma voz infantil e feminina, mas por milésimos imaginei que poderia ser meu chefe ou um dos outros coveiros, ou qualquer outra pessoa que poderia censurar-me por gastar o tempo procrastinando. Olhei para baixo e confirmei ser mesmo uma menina. Usava um vestido preto rodado que ía até a canela e um pouco acima da cintura havia uma faixa também preta, metade de seus longos cabelos loiros – com cachos nas pontas – estava presa com uma fita da mesma cor, usava sapatos, luvas e meias pretas; tinha ainda bochechas rosadas, redondos e inocentes olhos azuis, lábios pequenos e vermelhos e uma pele branca e fina. Geralmente eu não reparo tanto assim em crianças, mas aquela estava me assustando um pouco, por isso me ative a tantos detalhes. Ela sorria para mim, um sorriso contagiante de quem está feliz por me ver, mas eu nunca tinha visto aquela criança na minha vida. Alguns parentes gostam de enfeitar bem suas crianças para os enterros. Acho errado tudo isso, muito errado. Prefiro que responsáveis contem aos menores que o parente virou uma estrela no céu do que trazê-los para um choque tão violento de realidade. E, bem, não que eu seja medroso, mas não tinha visto aquela menina chegar, ela estava arrumar tão a caráter que parecia um sinistro anjinho da morte e o pior: eu sabia que ela não era um espírito, logo eu tinha razões para sentir medo. Crianças conseguem ser assustadoras quando querem, especialmente se elas sabem o seu nome sem você nunca tê-las visto antes na vida.

Ahm, oi garotinha. – fui simpático, mesmo tremendo por dentro – Como posso te ajudar?

Sou eu! Louis. – ela abriu os braços e girou no lugar.

O que!? – olhei ao redor – Louis, o que está fazendo com essa menina?

Não é maravilhoso? Consegui entrar no corpo dela para ser real novamente! Até as pessoas vivas podem me perceber! – a criança estava radiante. Deu educados pulos enquanto falava e segurou as próprias mãos, entrelaçando os dedos – Infelizmente não consigo controlar essas... atitudes efusivas, mas eu me sinto feliz de qualquer forma!

Onde almas perdidas se reencontram (GHOST!LOUIS)Onde histórias criam vida. Descubra agora