Tea

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Há algum tempo acordo com um cheiro gostoso de café coado na hora. Ontem, irritado, até saí por aí tentando desvendar de onde vinha aquele aroma doce achocolatado. Sei não, parece que ele ainda trazia alguma coisa de erva, dessas doces que dão calmaria à gente estressada da redondeza. Mas ao café não se mistura erva nenhuma. Então imaginei que aquilo fosse apenas coisa de minha alucinação por esse aroma marrom fervente que vem de um não sei onde. Será que vou ficar parecido com os outros? Sempre tive medo de desenvolver minhas próprias maluquices.

A porta da cozinha é a única que dá acesso à casa. Chamo de casa um quarto-cozinha-sala e um banheirico, onde se toma banho desviando as canelas do sanitário. Ontem, antes de pôr os pés na rua, quando me dei conta já estava parado do lado de fora olhando para ela. Por um instante consegui esquecer que estava seguindo o rastro do aroma de café, inalando os gases alucinógenos com o nariz erguido. Preciso pintar aquela porta. O azul céu já está descascando, culpa do sol e da chuva que a castigam o ano inteiro. Minto, agora no inverno o laranjo escaldante do verão desce mais para o lado da serra e não a deteriora tanto.

Não sei por quanto tempo fiquei parado lá, olhando para a porta. Só me lembro de ter despertado subitamente quanto uma brisa empurrou o cheiro de café com mais força sobre mim e me fez reagir com os instintos mais primitivos ligados às narinas. Minha capacidade sensitiva sempre fora anormalmente exaltada.

Eu precisava encontrar de onde vinha aquele aroma gostoso. Um dia desses dou um jeito naquela porta.

"Cuidado aí amigo!", surgiu uma voz falando atrás de mim antes de eu completar a meia-volta em direção à rua. Mais um pouco e eu pisava na bolsa de ferramentas de um sujeito bombado, trajando o jaleco verde da concessionária de energia. O cara, com certeza, já estava lá antes de eu chegar e eu nem havia notado. Um silêncio nos paralisou por um instante e só agora entendo por que ele me olhava desconfiado, segurando um alicate em frente a caixa do relógio medidor.

"Tá sentindo o cheiro?", perguntei sem querer, quebrando a dormência entre nós. Mas, eu não pude encará-lo.

"Como é?", devolveu-me o rapaz sem entender o que eu estava dizendo. Em resposta, levantei o nariz para cima e sorvi o aroma sem olhar para os lados.

"Olha, é só pagar a conta e fica tudo numa boa", respondeu o sujeito tentando se livrar de mim.

Um minuto depois o funcionário da companhia fechou a caixa do relógio, recolheu suas ferramentas e partiu sem dar importância ao cheiro de café que tanto me instigava. Era inacreditável que ele não tivesse percebido o cheiro delicioso de café fresco. O ar estava coberto por aquela essência que me trazia o sabor da bebida à boca, quase me aquecendo a garganta. Difícil seria saber de onde vinha, estando em toda parte. E quando finalmente decidi ir numa direção, outros gases tomaram meus sentidos, irritando-me os olhos.

"Mano, tu é doido, maluco!", disse qualquer um, dobrando a esquina com passos apressados. As palavras do magricela me conduziram aos meus maiores medos. Loucura, alucinação, perda dos sentidos.

"Um tapa?", perguntou-me o intruso sem receber resposta em troca. Eu estava de novo olhando para a porta. A única passagem para dentro de casa. Eu preciso pintar aquela porta e consertar seus defeitos. Meu barraco é tão pequeno que a porta é também sua única fachada. Há, sim, uma parede lateral com pouco mais de cinquenta centímetros, onde fica instalado o relógio medidor. Mas é minúscula e não conta como fachada. E do outro lado direito já é a parede da casa do vizinho. Moro num beco? Recentemente me dei conta disto. Driblo os espaços de um barraco improvisado num beco. Sorte que as construções por aqui não seguem as esquadrias convencionais e o que pior seria um retângulo de um e meio por cinco metros de comprimento, na verdade é um quadrilátero com cada lado em seu tamanho individual. Construído assim, meu beco-casa nos oferece dois metros e trinta de largura nos fundos, que são suficientes para termos o luxo de um banheiro.

Despregando-me da porta, lamentei que a fumaça do pito do magricela tivesse afugentado o aroma de café.

"Vai um tapa aí, doido?", insistiu o varapau mal tatuado.

"Preciso encontrar o cheiro de novo!" Exclamei instintivamente. Com certeza eu disse aquilo para mim mesmo, mas nem me dei conta de que havia falado em voz alta.

"Maluco demais! Doido, doido! Mas, escuta, o bagulho é caro. Tá me entendendo?!".

Eu não sei porque aquele magricela me chamava de doido. Eu tenho muito medo de ser como ele. E as pessoas por aqui não gostam muito de gente assim.

"Dá pra arrumar, maluco. Mas, a parada é dura. Ó, mas tô contigo. Na boa?! Vamos levar na maior e ajeitar a grana pra ti; pra nós. Na moral?!"

Eu não sei de onde as pessoas surgem de repente e fico pensando como são essas ligações que as fazem se conectar através dos fuxicos que lhe interessam. Apenas sei que do nada, duas dúzias de olhos apontaram em minha direção, causando-me pavor e eu tive que encostar melhor a porta para eles não entrarem.

"Magrela!", gritou um décimo terceiro. Esse também não sei de onde veio. Materializou-se na atmosfera esfumaçada. Os odores ácidos dos dois logo entupiram totalmente o cheiro de café e me senti satisfeito quando eles se lembraram de que precisavam ir fazer um sei lá o quê.

"Tamo junto mano! Esqueço de tu não!"

Essa foi a primeira despedida sincera que eu tive até hoje. À tarde os dois foram sepultados no Rio José Pedro, mas os polícias não os deixaram boiar onde haviam escolhido serem enterrados.

Eu devo ter esperado um bom tempo até que a fumaça se dissipasse e eu pudesse sentir o aroma de café outra vez. Mas o cheiro já não era tão forte. E não poder inalar o sabor doce de café como antes foi uma decepção enorme para mim. Tive muito medo de jamais sentir aquele cheiro de novo. Felizmente meu fascínio por aquela bebida era grande o bastante para eu a identificar mesmo misturada aos outros cheiros do ar. O aroma era apenas um fio de seda cortando a atmosfera e eu precisava seguir seu rastro diminuto.

"Besteira!"

"Como, besteira?!", perguntei ao vento, irritado com a intromissão que vinha de algum lugar.

"Tea não sai para a rua sem mim."

Falavam ao telefone sobre mim, Tea. Num dia qualquer me apelidaram de Tea que não era meu nome de verdade. Hoje eu não sei mais como me chamo de fato.

"Sim! Ele está bem... claro! Tea está sempre comigo, mamãe."

Eu não me importo de me chamarem de Tea, apesar de soar algo do gênero feminino. Mas eu nunca disse nada a ninguém. Jamais direi que meu apelido parece ser um nome mais apropriado para meninas.

"Iremos assim que der... Eu sei! Ou a senhora acha que cuidar sozinha de um filho adolescente é fácil?!".

Também não vou dizer que recentemente eu vi meu apelido escrito na manchete de uma revista que encontrei aberta sobre a mesa da cozinha. TEA. A escola me punha em pânico, mas as letras sempre me fizeram ficar calmo. Foram elas que me contaram o que estava escrito lá. Eu não gosto muito de bisbilhotar as coisas dos outros, mas foi lendo o que dizia aquele artigo que descobri de onde vinha meu apelido. Uma simples construção com as iniciais de Transtorno do Espectro Autista.

"Tea!?"

Uma voz me chamou de dentro de casa trazendo com ela o cheiro acentuado de café.

Ontem, finalmente eu descobri de onde vinha aquele cheiro maravilhoso. Lá dentro do beco-casa, uma xícara branca de lousa sobre a mesa guardava os vapores que se desprendiam num compasso lento, evaporando-se no ar. 

TEAOnde histórias criam vida. Descubra agora